Manhã.
Tenho areia nos olhos.
Ossos frágeis, quebradiços.
Creio em deus e em seus intermediários.
Santos, caboclos, orixás.
Caminho no deserto desde antes da formação dos oásis.
A delicadeza é uma semente espinhosa.
Tenho areia nos olhos.
Água no interior dos dentes.
E me perco com insistência.
Creio no fogo sobre todas as coisas.
Creio no fogo dentro de todas as coisas.
Creio no fogo.
Onde habito tudo é noite.
Me alimento de restos e sou atravessado por futuros.
Tenho areia nos olhos.
Tenho areia nos ossos.
Não creio em nada além do caminho.
Não creio em nada além do deserto.
Não creio em nada que não tenha cheiro de mata.
Tenho areia nos olhos.
Ouço canções que já não mais são entoadas.
Converso com o rio.
Só Maria me faz ainda querer estar aqui.
Estar aqui e seguir.
Maria acorda e olha os três gatinhos amamentando no centro da sala.
Os acarinha, sorri e volta a dormir.
Trago mais mortos no corpo do que sementes.
Hoje é véspera de trovoada.
Maria me disse: papai, amanhã vai ser o caos.
Não existe verdade fora do ato de mastigar a terra.
Ontem a lua se pôs bonita.
Creio na lua.
Em seus ciclos e em suas sombras.
Olho o semblante dos mortos no espelho.
Eles choram.
Se curvam ante o declínio da esperança de Tempo.
Sou somente uma criança com areia nos olhos.
E esses vulcões que me nascem à pele.
Anunciam aparições e promessas.
Maria sonha e em seu sonho sou só uma criança com areia nos olhos.
Tarde.
(...)
quando a face do polegar assentou à lâmina do leitor ótico
revi as pessoas da zona rural com suas melhores roupas de domingo
com seus melhores perfumes de domingo
perguntando umas às outras:
já perdeu a honra?
quando as mãos da mesária arrumaram meu dedo sobre a lâmina do leitor ótico
minhas unhas roídas ficaram demasiadamente expostas
e certa vergonha / certa aflição
veio à tona
como um golfinho que salta em direção às nuvens ou às estrelas
onde habito, habita a noite
onde habito, habita o frio
são rápidos e ligeiros como raios os passos da história se dissolvendo em pura política
e quando a história se dissolve em pura política
o reinado do terror se instaura no trono de Tempo
Maria pressentiu o caos,
a razão no corpo de L. se assustou com o cadáver que em sonho enterrara no jardim
creio no sol sobre todas as coisas
creio no sol dentro de todas as coisas
creio no sol
quando a face do polegar assentou à lâmina do leitor ótico
revi meu avô na sessão eleitoral da prefeitura
votando em cédula de papel
no coronel Adauto Bezerra
certa vergonha / certa angústia / certa aflição
e as pessoas da zona rural com a poeira avermelhada da piçarra das várzeas
com suas melhores roupas de domingo
com seus melhores perfumes de domingo
perguntando umas às outras:
já perdeu a honra?
(...)
Noite.
a estrela cintilou no céu.
fogos na terra.
que haja mais justiça.
que haja mais sonho e comida.
diversão & arte.
e que os fascistas todos marchem ao inferno.
nuno g.
Toróró.
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