chove sobre os séculos que me habitam
e sobre essa infinidade de objetos desconhecidos que me povoam
o entardecer nunca foi tão amarelo quanto ontem
e o laço nunca foi tão preciso e amoroso
chove sobre as dúvidas e aflições que me respiram
e sobre essa infinidade de estranhos afetos entre as ferrugens
o entardecer nunca foi tão roxo e sincero quanto ontem
e o chicote vibrou com a perfeição que exige todo mistério
todo poema é um tratado teológico
e a metafísica é um biscoito doce que se serve com café
fizemos spaguetti com ternura, josefinas, azeitonas e tomates
comemos no jardim com as mãos
olhando esperanças e louva-deuses
enquanto o laço e o chicote traçavam círculos concêntricos
sobre nossas cabeças
sobre nossos desalinhados cabelos
sobre nossas velhas roupas coloridas
Ele veio de longe e nos tocou com suas plumas de arara
percorremos uma vez mais nossas árvores genealógicas
guiados por seu sonho até a fronteira
onde seu avô buscava armas e oxigênio para a sobrevivência
a metafísica é um café amargo que se serve com biscoitos
a onça parda, a pintada e o maracajá
todos rezando sob as lágrimas de Oxalá
os tempos em que vestíamos negro desaparecendo no firmamento
e o gavião pairando sobre nossas delicadezas eróticas
pego um fósforo, acendo o cigarro
brinco de medir as distâncias entre o beijo e o escarro
ao contrário de Suassuna
que escrevia para espantar a morte
escrevemos para não esquecê-la
para sempre recordar que um dia ela chega
raios e tempestades sobre o que somos
e o que somos é sempre o último que nos chega
aos pés da Árvore nossos desejos mais sublimes
e todas aquelas imagens que brotam do pós-apocalipse
nenhum mal dura mil anos
todo poema é um tratado sobre nudez e eternidade
quem me sopra estes delírios com coisas reais?
quem acende entre minhas frestas estas súbitas intuições?
imprecisas inquietações que me flecham
e outras aparições inesperadas
tua avó cozinhando quirerinha
tua avó lapidando diamantes
tua avó fritando bolinhos caipiras
e o vento soprando do infinito
enquanto minhas mãos misturam o suco de limão ao açúcar mascavo
sonhando com os lírios brancos que colheram nos bambuzais...
nuno g.
Toróró, 05 de abril de 2022.
senti o cheiro da quirerinha. Boa poeta!
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