terça-feira, 5 de abril de 2022

lírios brancos

chove sobre os séculos que me habitam

e sobre essa infinidade de objetos desconhecidos que me povoam

o entardecer nunca foi tão amarelo quanto ontem

e o laço nunca foi tão preciso e amoroso

chove sobre as dúvidas e aflições que me respiram

e sobre essa infinidade de estranhos afetos entre as ferrugens

o entardecer nunca foi tão roxo e sincero quanto ontem

e o chicote vibrou com a perfeição que exige todo mistério

todo poema é um tratado teológico

e a metafísica é um biscoito doce que se serve com café

fizemos spaguetti com ternura, josefinas, azeitonas e tomates

comemos no jardim com as mãos

olhando esperanças e louva-deuses

enquanto o laço e o chicote traçavam círculos concêntricos

sobre nossas cabeças

sobre nossos desalinhados cabelos

sobre nossas velhas roupas coloridas

Ele veio de longe e nos tocou com suas plumas de arara

percorremos uma vez mais nossas árvores genealógicas

guiados por seu sonho até a fronteira

onde seu avô buscava armas e oxigênio para a sobrevivência

a metafísica é um café amargo que se serve com biscoitos

a onça parda, a pintada e o maracajá

todos rezando sob as lágrimas de Oxalá

os tempos em que vestíamos negro desaparecendo no firmamento

e o gavião pairando sobre nossas delicadezas eróticas

pego um fósforo, acendo o cigarro

brinco de medir as distâncias entre o beijo e o escarro

ao contrário de Suassuna

que escrevia para espantar a morte

escrevemos para não esquecê-la

para sempre recordar que um dia ela chega

raios e tempestades sobre o que somos

e o que somos é sempre o último que nos chega

aos pés da Árvore nossos desejos mais sublimes

e todas aquelas imagens que brotam do pós-apocalipse

nenhum mal dura mil anos

todo poema é um tratado sobre nudez e eternidade

quem me sopra estes delírios com coisas reais?

quem acende entre minhas frestas estas súbitas intuições?

imprecisas inquietações que me flecham

e outras aparições inesperadas

tua avó cozinhando quirerinha

tua avó lapidando diamantes

tua avó fritando bolinhos caipiras

e o vento soprando do infinito

enquanto minhas mãos misturam o suco de limão ao açúcar mascavo

sonhando com os lírios brancos que colheram nos bambuzais...


nuno g.

Toróró, 05 de abril de 2022.

Um comentário: