Estávamos à beira de um penhasco muito alto.
Estávamos contentes e saudáveis.
Não nos comunicávamos.
Nem por palavras, nem por gestos.
Nem por quaisquer outros meios.
O penhasco era muito alto.
As falésias de Icapuí, talvez.
E no fundo uma água transparente.
Peixes pré-históricos ameaçadores.
Estávamos numa singela varanda.
O horizonte era imenso.
E nele se anunciava um arco-íris.
Uma queda seria fatal.
Estávamos imóveis e em paz.
Meu abdômen encharcado de abandono.
Aquele mesmo abandono que você com tanta razão detesta.
pai, quando eu corro muito
quando eu brinco muito
minha perna dói
filha, ainda quando eu não corro
ainda quando eu não brinco
todos os os meus ossos doem
Acordei bem e razoavelmente amoroso.
Algum dia teríamos que saltar no precipício.
Algum dia teríamos que nadar entre os ameaçadores peixes pré-históricos.
Éramos crianças não contaminadas por infantilismos.
Uma máquina de costurar havia costurado nossos corpos.
Estávamos imóveis e em paz.
Acorrentados à paz.
E nada sabíamos uns dos outros.
Nada além das linhas com as quais a máquina de costura nos costurara.
O penhasco era muito alto.
O horizonte era demasiado extenso.
Talvez estivéssemos em alguma das falésias de Icapuí.
Talvez.
nuno g.
Cachoeira, 01 de abril de 2022.
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