num átimo de segundo e o chão esturricado do rio seco
e os cactos e o céu sem nuvens
desapareceram e em seu lugar
as fossas marianas enterradas sob quilômetros e quilômetros de águas
e nenhuma fumaça traçando o caminho de volta à superfície
à terra devastada e abandonada com alegria e tristeza
com pesar e alívio
com o terror arcaico e primitivo de um mito esquecido
serpentes, serpentes e mais serpentes
trocando sucessivamente de peles e substituindo suas cores por novas cores
num movimento incessante e lisérgico
apenas o que agora em si mesmo permanecia gravitando
sem nenhum centro sem nenhum norte sem flores sem balanças sem juízos de valores
distante o suficiente de tudo o que soava detestável
mas também distante do agradável cântico dos pássaros
quase livre não fosse o pânico do sal
e a consciência fraturada ainda
como uma ferida entre o osso e o osso
ou como a saudade enferma de um deserto onde se constituíra
num átimo de segundo e estava dentro do coração do último medo imaginário
residindo na oposição de uma tarde sem sol
(todas as tardes nas fossas marianas são tardes sem sol)
e a ausência de fumaça torturando a mente
como o martelo lunar torturaria a bigorna de Apolo
quase pânico não fosse a liberdade do sal
e a voz suave da serpente
transitando à memória imberbe da terra devastada
onde um átimo de segundo antes
se encontrava
(todo gesto aqui é extensão de um silêncio que antecede)
o fio de prata e fumaça se extinguindo
e as águas evaporando todas as formas que permitiram ao si mesmo existir
nuno g.
Toróró, 09/10/24.
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