quarta-feira, 7 de agosto de 2024

ante o Insondável

           para Adélia Prado,


meus joelhos seguem sangrando de tanto chão

em trevas me reconheço e ouço as cem mil vozes que me habitam

relâmpagos e trovoadas me acendem e me estilhaçam

em cem mil vagalumes

estamos mergulhados na história, ou seja, no terror absoluto

atravessamos os tempos em que nossos corpos se fizeram vidro

fomos atravessados pelos tempos em que nossos corpos se fizeram metal

o homem da mão seca ainda acaricia meus cabelos

e sorri quando vejo meu avô quase-pássaro ousar o abandono do abismo

o homem da mão seca ainda me seca as lágrimas

quando recolho o sangue de minha mãe na calçada suja da Conde da Boa Vista

o homem da mão seca ainda tece curativo nos meus joelhos

quando desperto em Belém em meio ao tiroteio que matou meu pai

e penso: eles sabiam que ele era meu pai

meus joelhos seguem sangrando de tanto chão

na mata sombria reacendo minha devoção

e aprendo com o ferreiro a forjar silêncios

cem mil vagalumes me guiam

cem mil vozes me habitam

em cada poema respira uma breve e delicada oração


nuno g.

Toróró, 07 de agosto de 2024.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Que lindo e profundo, transformar a dor insondável em poesia e terminar com a certeza que "em cada poema respira uma breve e delicada oração", me emocionei.

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