terça-feira, 13 de agosto de 2024

edifício Grão-Pará (sonho noir)

Voltou a ser o que sempre foi: um cárcere.
Gleizer apareceu cuspindo ossos.
A princípio pensei tratar-se de ossos de galinha.
Daqueles que faziam meu avô evitar comer galinha em restaurantes.
Mas eram ossos humanos.
Revestidos de cartilagens frescas e nervos expostos.
Larissa fez pasta de amendoim.
As fezes de Assucena amanheceram verdes.
Como o lodo do rio da infância.
Como os olhos do gato maracajá morto aqui semana passada.
Três taças de café ao som de Ventania.
Garfield, o gato gordo, come a batata doce que cai da mesa.
Luís transforma o berço em cama montessori.
A vida pesa. Montanhas e montanhas de cansaço sobre meus ombros.
Vertigem. Pulsação acelerada. Ressentimentos geológicos se movendo à luz do sol.
Recordo à voz de uma amiga prostituta que me repetia.
É só um trabalho poeta, como qualquer outro.
Até que se apaixonou por um caminhoneiro e partiu.
Com sua cigana de estimação e alguma culpa entre os cílios.
Acendo mais um cigarro e ouço a voz de Ayla.
Esse cigarro te mata.
Desconfio de tudo e de todos.
Suave e delicada paranoia no olhar em direção ao Nada.
Saudades dos tempos da pandemia e de todos os refúgios que me mantiveram vivo.
O telefone toca: Assucena desperta.
Alice nos envia três mil mensagens telepáticas por segundo.
Não chove. É agosto. Escoro minha angústia na palha.
E clamo ao Velho alguma fé numa paz que sei impossível.

nuno g.
Toróró, 13 de agosto de 2024.


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Ciranda de hoje, texto lido por Ayla Andrade no lançamento do Dicionário dos medos imaginários: morfemas.

 



O tempo é a melhor testemunha do quanto se vive.

Uma ciranda que roda, circulando mão a mão, na roda do tempo, enquanto se olha o céu.

Penso que vivo pouco e devagar. Olho pouco para trás. Mas é quando olho para o lado que vejo quantas mãos me seguram nessa ciranda. 

Porque o tempo não para, e por vezes acelera ou recua, e é onde a ciranda se embaralha, algumas mãos se soltam, a gente tropeça e precisa depois correr, braço estendido, tentando alcançar o perdido. 

A ciranda é potente e ciclicamente retorna ao ponto inicial. Suspeito que serve para recuperar o fôlego, sorrir de volta, ajeitar a coluna e... alcançar o perdido. 

Nessa ciranda o tempo marca o tom, o compasso, o recomeço e por vezes, o fim. Por mais que nunca estejamos preparados ou desejosos do fim. 

Mas rodando com a ciranda certa, mão a mão, com chuva ou sol, amor e um pouco de raiva, a gente chega ao fim, sorrindo. 

Rodando cheguei até aqui. E quando olho para lado, ciranda que a vida me deu, vejo que o tempo me foi generoso: mão a mão, os amigos rodam comigo enquanto ainda olhamos o céu.


Ayla Andrade.


https://www.instagram.com/dicionariodosmedosimaginarios?igsh=eHZma2FiYmxuZnRo

 





domingo, 11 de agosto de 2024

cemitério bizantino II

roupas estendidas no varal

e ainda essa sensação

de despertencer ao reino onde desperto


nuno g

11/08/24

sábado, 10 de agosto de 2024

cemitério bizantino

sonhei com uma fotografia de damário da cruz

meias sujas espalhadas no quintal

e a certeza de que não pertenço ao reino onde desperto


nuno g.

toróró, 10/08/24

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

ante o Insondável

           para Adélia Prado,


meus joelhos seguem sangrando de tanto chão

em trevas me reconheço e ouço as cem mil vozes que me habitam

relâmpagos e trovoadas me acendem e me estilhaçam

em cem mil vagalumes

estamos mergulhados na história, ou seja, no terror absoluto

atravessamos os tempos em que nossos corpos se fizeram vidro

fomos atravessados pelos tempos em que nossos corpos se fizeram metal

o homem da mão seca ainda acaricia meus cabelos

e sorri quando vejo meu avô quase-pássaro ousar o abandono do abismo

o homem da mão seca ainda me seca as lágrimas

quando recolho o sangue de minha mãe na calçada suja da Conde da Boa Vista

o homem da mão seca ainda tece curativo nos meus joelhos

quando desperto em Belém em meio ao tiroteio que matou meu pai

e penso: eles sabiam que ele era meu pai

meus joelhos seguem sangrando de tanto chão

na mata sombria reacendo minha devoção

e aprendo com o ferreiro a forjar silêncios

cem mil vagalumes me guiam

cem mil vozes me habitam

em cada poema respira uma breve e delicada oração


nuno g.

Toróró, 07 de agosto de 2024.

domingo, 4 de agosto de 2024

Afogados

a vida é uma besta selvagem.

Stella Díaz Varín 



Não culpem o mar nem os pés.

Ainda menos as sereias e seus cânticos devocionais.

Não culpem o verde nem o sal.

Ainda menos as espumas brancas e cintilantes.

Não culpem o fogo nem a madeira.

Ainda menos o crepitar dos ossos ou o estalar das vertigens.


Apenas deixem que seus passos os conduzam ao inevitável afogar-se.


nuno g.

Toróró, 04 de agosto de 2024.



sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Aparecida

Ela nunca esteve entre nós.

Talvez por isso podia falar de Eliana antes da queda.

De suas coxas brancas, seus êxtases e suas manhas.

Carregou o estigma da adoção como quem carrega um daimon de aço.

E o nome da santa indígena saída das águas de um rio.

Ela nunca esteve mesmo entre nós.

Não lhe reservaram convite nem lugar à mesa.

Talvez por isso podia passear com seus cães pela cidade.

O estigma sempre arrastado à coleira.

E pouca razão à ferocidade.

A lei do luto lhe levou à metrópole.

Casou. Enviuvou. Cruzou a fronteira da península.

E desapareceu numa Espanha de touros e esquecimentos.


nuno g.

Toróró, 03 de agosto de 2024.