sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Jacinta.

Nomeei minha dor: Jacinta.

No meio de uma trovoada.

Ausências voando entre as gotas d'água.

Beija-flores se refugiando nos cabelos das Marias.

Batizei minha dor: Jacinta.

E dois homens vestidos de branco chegaram.

Fizeram coisas que tinham a fazer.

O mais velho, cabelos e barba grisalhos, guiava a limpeza.

O mais jovem, imberbe, executava e aprendia.

Não levantei da cama.

Observei.

*   *   *

Papai, prefiro lembrar dele vivo.

Papai, a Magui e o Bené devem estar sofrendo.

Chorou, me abraçou e foi brincar com a Ignez.

Papai, ele era muito legal.

Papai, você gostava muito dele.

Sorriu e foi brincar com a Ignez.

Sim filha, foi ele que foi me buscar no Recife quando sua vó suicidou.

Sim filha, foi ele que foi buscar o corpo de sua vó no Recife quando ela virou lua.

Sim filha, foi ele que do púlpito da igreja matriz de Russas deu voz à minha dor quando seu bisavô morreu.

Sim filha, foi ele que me mostrou tantos livros quando eu ainda buscava nos livros o que a vida não podia me dar.

Sim filha, foi ele que leu em voz alta para mim o "poema em linha reta" que me fez amar meu destino torto.

Sim filha, foi ele que me disse as palavras mais sinceras quando defendi a tese de doutorado que escrevi com você no colo.

Sim filha, a chegada dele era todos os anos um acontecimento.

*   *   *

Os homens vestidos de branco partiram.

Papai, eu te amo.

A trovoada seguiu.

Jacinta aqui - se não me mata te escrevo.

Assucena me chama. Os analgésicos finalmente fizeram algum efeito.

As águas lavam tudo, menos as mentiras que assassinaram minha infância.


nuno g.

Toróró, 26 de janeiro de 2024.

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