à memória de José Alcides Pinto,
Sou feito de Sonho e Solidão.
Minhas vestes são as águas das chuvas.
E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.
Nada em mim recorda as cinzas do esquecimento.
Tudo é noite e escuridão no manto azul estrelado com que teço minha pele.
Sou o Sol de mim mesmo que se estende desde as várzeas sertanejas às praias coloniais.
Sou feito de Promessas e Horizontes.
Minha nudez é a do deserto do altiplano andino e das mesetas mexicas.
Quando meus olhos encontraram os olhos de Mama-Quilla na fortaleza inexpugnável de Sacsayahuaman.
Quando Wiracocha criou com barro e amor o Sol a Lua e as Estrelas.
Quando os primeiros sacrilégios feriram a crosta da Terra e dos Oceanos.
E os fervores tóxicos do ódio escaparam das entranhas do Mundo.
Minha nudez se revelou em toda sua fragilidade de ossos em precoce envelhecimento.
Sou feito de Fé e Esperança.
Tudo em mim é tremor. Sou o Grande Cenote onde Walt Whitman recebeu seu corpo-revelação.
Sou a Morte, a Doença e a Cura.
Os movimentos do abismo insondável e as ruínas da civilização do Caldeirão e Canudos.
Sou feito de Sonho e Solidão.
Sob as visões da Ayahuasca da Codeína do Ópio e da Morfina.
Vi meus joelhos sangrando de tanto chão.
E os meus mortos peregrinando em louvor ao Padre Cícero e à Virgem de Guadalupe.
Vi meus dedos se esticando como caudas de seres pré-históricos.
Vi a Virgem da Conceição semeando Luz nas águas doces do Jaguaribe e do Amazonas.
Sou feito de Lírios Brancos e Papoulas Brilhantes.
Sou o Sono que antecede a Eternidade.
Sou o Nada e a imensa vastidão que nos separa de nossa própria Consciência.
Minhas vestes são as pedras que caíram dos céus.
E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.
Nada em mim recorda o cinzento esquecimento.
Tudo é Azul, Noite e Escuridão.
Tudo é um só e único manto estrelado que nos cobre a cegueira e o desespero e a insanidade.
Sou feito de Sonho, Silêncio e Solidão.
E da poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes...
nuno g.
Toróró, 27 de janeiro de 2024.
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