sábado, 27 de janeiro de 2024

hino à poesia.

à memória de José Alcides Pinto,


Sou feito de Sonho e Solidão.

Minhas vestes são as águas das chuvas.

E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.

Nada em mim recorda as cinzas do esquecimento.

Tudo é noite e escuridão no manto azul estrelado com que teço minha pele.

Sou o Sol de mim mesmo que se estende desde as várzeas sertanejas às praias coloniais.

Sou feito de Promessas e Horizontes.

Minha nudez é a do deserto do altiplano andino e das mesetas mexicas.

Quando meus olhos encontraram os olhos de Mama-Quilla na fortaleza inexpugnável de Sacsayahuaman.

Quando Wiracocha criou com barro e amor o Sol a Lua e as Estrelas.

Quando os primeiros sacrilégios feriram a crosta da Terra e dos Oceanos.

E os fervores tóxicos do ódio escaparam das entranhas do Mundo.

Minha nudez se revelou em toda sua fragilidade de ossos em precoce envelhecimento.

Sou feito de Fé e Esperança.

Tudo em mim é tremor. Sou o Grande Cenote onde Walt Whitman recebeu seu corpo-revelação.

Sou a Morte, a Doença e a Cura.

Os movimentos do abismo insondável e as ruínas da civilização do Caldeirão e Canudos.

Sou feito de Sonho e Solidão.

Sob as visões da Ayahuasca da Codeína do Ópio e da Morfina.

Vi meus joelhos sangrando de tanto chão.

E os meus mortos peregrinando em louvor ao Padre Cícero e à Virgem de Guadalupe.

Vi meus dedos se esticando como caudas de seres pré-históricos.

Vi a Virgem da Conceição semeando Luz nas águas doces do Jaguaribe e do Amazonas.

Sou feito de Lírios Brancos e Papoulas Brilhantes.

Sou o Sono que antecede a Eternidade.

Sou o Nada e a imensa vastidão que nos separa de nossa própria Consciência.

Minhas vestes são as pedras que caíram dos céus.

E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.

Nada em mim recorda o cinzento esquecimento.

Tudo é Azul, Noite e Escuridão.

Tudo é um só e único manto estrelado que nos cobre a cegueira e o desespero e a insanidade.

Sou feito de Sonho, Silêncio e Solidão.

E da poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes...


nuno g.

Toróró, 27 de janeiro de 2024.

Nenhum comentário:

Postar um comentário