à memória de José Alcides Pinto,
Anônimo, o gato, descansa protegido da chuva à sombra do limoeiro.
Flutuo sobre a loucura e o delírio de gerações e gerações de psicanalistas.
Flutuo sobre o cinismo, a ironia e a descrença contemporânea.
Invoco espadas antigas, amuletos perdidos, orações em línguas desconhecidas.
Flutuo sobre as visões desnorteadas dos medos imaginários.
Sobre o mar de ruínas e destroços.
Sobre o sangue das civilizações antigas e suas bibliotecas desaparecidas.
Flutou sobre a dor, a solidão e as cicatrizes do abandono.
Invoco Fúrias, Musas e outros seres de outros mundos.
Invoco a Estrada e seus tentáculos de Sabedoria.
Garfield, o gato, descansa protegido da chuva no tapete rosa da sala.
Invoco minhas próprias forças desconhecidas.
Para que semeiem uma nova paz e uma nova lucidez e uma nova utopia.
Flutuo sobre o fim do mundo.
Sobre os vestígios do fim do mundo.
Sobre as galáxias em gestação enquanto esse mundo desaparece.
Invoco alfarrábios, fragmentos de estrelas e luzes subterrâneas.
Estudo novamente as cores e os signos.
O uivo de Allen Ginsberg e a inteligência descomunal borrifada por Kerouac.
Retomo minhas anotações sobre minha própria estadia no inferno.
E vou movendo meu corpo apodrecido entre as águas vaporosas do Jorro.
Reaprendo com os pássaros a me alimentar de sementes.
Invoco o Sol. Invoco a Claridade que desfaz os gestos das sombras fantasmagóricas.
Invoco o Anjo que me acompanha desde o berço.
Escuto a Voz de minhas filhas escorrendo entre as frestas de minha desértica imaginação.
Escuto a Voz das cem mães que tive nesta encarnação.
Escuto o berro bravo de meu pai.
Acaricio cada ferida sua.
Extraio de seu corpo as balas que o levaram para longe.
Ouço o vento do Infinito. Ouço Aracati. Ouço as Onças.
Invoco Tempo. Rogo paciência.
E adormeço como se nunca nada houvesse ocorrido.
Como se a máscara de gelo e fogo fosse apenas uma forma do pensamento.
E torno a flutuar sobre os gatos e suas esperanças.
Sobre a chuva e seus segredos.
Sobre os temores e suas iras.
Invoco ao que traz o poder de dissolver o corpo velho e restituir a saúde.
Escuto a Voz de minhas filhas e adormeço quase em paz.
Como um planeta ilusionado pela abrupta sensação de ter reencontrado sua órbita originária...
nuno g.
Toróró, 27 de janeiro de 2024
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