sábado, 27 de janeiro de 2024

hino à poesia II

 à memória de José Alcides Pinto,


Anônimo, o gato, descansa protegido da chuva à sombra do limoeiro.

Flutuo sobre a loucura e o delírio de gerações e gerações de psicanalistas.

Flutuo sobre o cinismo, a ironia e a descrença contemporânea.

Invoco espadas antigas, amuletos perdidos, orações em línguas desconhecidas.

Flutuo sobre as visões desnorteadas dos medos imaginários.

Sobre o mar de ruínas e destroços.

Sobre o sangue das civilizações antigas e suas bibliotecas desaparecidas.

Flutou sobre a dor, a solidão e as cicatrizes do abandono.

Invoco Fúrias, Musas e outros seres de outros mundos.

Invoco a Estrada e seus tentáculos de Sabedoria.

Garfield, o gato, descansa protegido da chuva no tapete rosa da sala.

Invoco minhas próprias forças desconhecidas.

Para que semeiem uma nova paz e uma nova lucidez e uma nova utopia.

Flutuo sobre o fim do mundo.

Sobre os vestígios do fim do mundo.

Sobre as galáxias em gestação enquanto esse mundo desaparece.

Invoco alfarrábios, fragmentos de estrelas e luzes subterrâneas.

Estudo novamente as cores e os signos.

O uivo de Allen Ginsberg e a inteligência descomunal borrifada por Kerouac.

Retomo minhas anotações sobre minha própria estadia no inferno.

E vou movendo meu corpo apodrecido entre as águas vaporosas do Jorro.

Reaprendo com os pássaros a me alimentar de sementes.

Invoco o Sol. Invoco a Claridade que desfaz os gestos das sombras fantasmagóricas.

Invoco o Anjo que me acompanha desde o berço.

Escuto a Voz de minhas filhas escorrendo entre as frestas de minha desértica imaginação.

Escuto a Voz das cem mães que tive nesta encarnação.

Escuto o berro bravo de meu pai.

Acaricio cada ferida sua.

Extraio de seu corpo as balas que o levaram para longe.

Ouço o vento do Infinito. Ouço Aracati. Ouço as Onças.

Invoco Tempo. Rogo paciência.

E adormeço como se nunca nada houvesse ocorrido.

Como se a máscara de gelo e fogo fosse apenas uma forma do pensamento.

E torno a flutuar sobre os gatos e suas esperanças.

Sobre a chuva e seus segredos.

Sobre os temores e suas iras.

Invoco ao que traz o poder de dissolver o corpo velho e restituir a saúde.

Escuto a Voz de minhas filhas e adormeço quase em paz.

Como um planeta ilusionado pela abrupta sensação de ter reencontrado sua órbita originária...


nuno g.

Toróró, 27 de janeiro de 2024


Nenhum comentário:

Postar um comentário