Vivemos uma ficção.
Estamos imersos num pesadelo.
O apocalipse deixou de ser um gênero literário.
Convertido em horizonte histórico avassalador.
O fascismo assumiu o comando do relógio do tempo.
O que nós buscamos se afasta de nós como o azeite da água.
A relação entre terror e realidade foi equacionada pela perversão.
Não escutamos. Não entendemos. Não vemos.
E os gritos de nossos sonhos já não nos flecham.
Quando as mãos sem cor apertaram o gatilho não puderam esquecer meu choro.
Olhei dentro do armário anos a fio o semblante dela.
E suas pernas torneadas e seu corpo esbagaçado na calçada.
Ainda assim permanecia bela e inviolável, soprou o coveiro.
Voltamos à ficção.
Mergulhamos uma vez mais no pesadelo.
Os submarinos, as armas nucleares e a falência psíquica.
Quando as ruas foram cobertas com folhas de maniva.
Quando choveu meteoros uma última vez.
Quando a perversão tornou-se o equalizador da canção do terror e da perversão.
Paramos de sonhar. Paramos de entender. Paramos.
E ainda sem escutar ou sem ver a fantasia persecutória prosseguia.
Os disparos, o salto e a teia de mentiras.
O que buscávamos se afastando como o azeite da água.
E os mortos em silêncio trabalhando em prol da incertidumbre.
Nas cidades invisíveis da floresta negra o sol atômico e as películas de culto.
As pernas torneadas entre as peças de antiquário.
O balé de delfines no deserto do Atacama.
Os gritos de nossas flechas já não sonham.
Só a montanha impávida e colossal saberá nos mover daqui.
O tempo desintegrará todos os relógios.
E os subterrâneos da terra voltarão a sorrir.
Só os que morreram muitas vezes saberão nos guiar para fora do pesadelo.
Só os que conhecem a terra dos mortos saberão restituir ossos ao corpo da realidade.
Só os que falam a língua dos pássaros e das nuvens entoarão canções de amor e utopia.
O balé de flores sob o asfalto derrotado.
E os afetos que nos atravessam como quando entendemos
que também os apocalipses guardam em segredo seus mais indecifráveis propósitos.
nuno g.
06 de maio de 22.
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