Descumprimos as prescrições,
esquecemos as oferendas, rompemos as interdições. O céu se fez vermelho de
sangue e a água dos rios ferveu como nos primórdios da criação. Foi longo o
caminho que levou os decaídos ao poder e durante este tempo nós estivemos
festejando. Nos distraímos, deixamos de lado nossas abluções. Eles foram
crescendo, ganhando espaço a pulso, infestando o labirinto de pulgas, piolhos e
ratos. Quando acordamos já era tarde e não havia ar que não estivesse
contaminado e então nos demos conta que nosso fogo estava apagado e enquanto
dançávamos esquecemos de alimentá-lo. Dormimos em demasia, não acendemos as
velas necessárias e deixamos o incenso mofar. Eles procriaram em tempo hábil,
cumpriram todas as normas e os prazos, se apossaram do pouco que havíamos
guardado e nos olharam com olhos de escárnio. Invocamos a chuva e a chuva não
veio, desaprendemos a extrair o sal das pedras, dos vegetais e das águas do
mar. Eles nos ofereceram risadas de escárnio. Foram apagando as luzes do
labirinto até que tudo estivesse em completa escuridão. E nós, encurralados
pela quantidade excepcional de feras baixamos as cabeças e fomos desfazendo
nossos pactos antigos. Entregamos tudo. Nossas roupas, nossos alimentos, nossos
utensílios de higiene e, por último, nossa preciosa dor. Eles queimaram nossas
flores, escarraram em nosso jardim e pisotearam nossa horta. Eram muitos e
traziam no semblante a memória da peste. Eles eram rudes e gravaram em nossa
pele a memória da peste. Eles sabiam à morte e foram implacáveis com os nossos
anos de descaso. Nossos membros estavam atrofiados e nada havia para colher nos
campos que não havíamos semeados. A voracidade com que se apossaram de tudo não
nos permitiu reação, estávamos atônitos e o único que nos restava era uma
inútil catarse. Vimos os faróis de seus automóveis cruzando as avenidas. Vimos
os faróis de seus automóveis se alastrando pelas ruas menores. E quando os mais
violentos deles se espalharam como brasas pelos becos de nossas vilas e aldeias
entendemos que já era demasiado tarde e não nos restava mais nada além das mãos
com as quais escrevíamos palavras confusas e versos desconexos no ar gelado que
escapava da boca deles e dominava a atmosfera. O preço da nossa distração
estava sendo cobrado com mais juros e correção do que havíamos imaginado. A
chuva não chegava. Nada crescia nos campos. A peste se propagava entristecendo
todos nossos animais. Entregamos tudo enquanto dançávamos. Deixamos de orar e
de vigiar quando orar e vigiar era o que mais necessitávamos. Nossas casas
estavam tomadas pela umidade e pelo musgo e não mais nos servia de abrigo.
Estávamos nus caminhando sobre a terra arrasada e o único que víamos era uma
que outra catarse desnecessária. Eles exibiam nos cumes das montanhas suas
novas habilidades. Eles executavam com perfeição seus malabarismos obedecendo à
exatas equações matemáticas que desconhecíamos as fórmulas e as composições.
Quando um de nós caía, exausto pela jornada, eles se limitavam a escarrar sobre
o cadáver. Quando um de nós chorava, tomado pelo clamor ante a certeza do insuportável,
eles se limitavam a escarrar sobre estas lágrimas. Fomos fúteis e o preço de
nossa futilidade estava sendo cobrado. Eles vinham de longe e traziam a força
que acumularam enquanto nós deixávamos escapar entre os dedos as sementes que
nos foram ofertadas. Vimos as máquinas metálicas chegando e destroçando os
gravetos de nossas barricadas. A nossa língua, reduzida à máxima vulgaridade,
se revelava incapaz de comunicar o que sentíamos e o que pensávamos. O
labirinto era deles e os minotauros dominavam toda a terra. Não havia onde se
esconder, não havia onde se ocultar. Nossos pensamentos estavam congelados,
nossos músculos estavam paralisados, nossos desejos estavam enfermos e nossos
sonhos haviam se convertido irremediavelmente em pesadelos que não conseguíamos
decifrar. Escrevíamos frases sem sentido no ar e essas frases se convertiam em
nossos novos e imprevistos algozes. Escutávamos o ressoar dos chicotes que
açoitavam a tristeza de nossos pequeninos animais domésticos abatidos sobre a
terra arrasada. Eles imprimiram seus selos esotéricos por todas as partes. Eles
ofereciam nosso sangue à sede das perversas entidades que lhe acompanhavam. E a
sede era infinita assim como infinito era o séquito dos seres decaídos que lhe
acompanhavam. Nossos dedos atrofiados queimavam antes de tocar o ar onde
pretendiam escrever qualquer coisa que nos salvasse. Todos os roteiros haviam
sido queimados. Todas as bússolas estavam desnorteadas. Eles davam o compasso.
Eles imprimiam o ritmo. Eles zombavam de todo o tempo em que distraídos
assistimos a dissolução dos reinos circulares. Buscávamos ervas para cozinhar
um chá e não as encontrávamos. Buscávamos chão para enterrar os náufragos e
chão não havia. Eles eram muitos e estavam por toda a terra. A nossa aflição
era imensa e o sol não dava conta de evaporar o mar de lágrimas em que
estávamos mergulhados. Nossas crianças nos olhavam com olhares de súplica e
nenhuma reação nossa era capaz de aplacar desespero tanto. Tamanha era a ferida
que não cicatrizava. Não havia remédio, não havia consolo, não havia estação
onde repousar nossa tormenta. Eles estavam dentro de nós, circulavam por nossas
veias e artérias e se apossavam de nossas múltiplas terminações nervosas. Eram
falanges e falanges e falanges incontáveis. Traziam a memória sem-fim de nossos
crimes de nossos pecados de nossas inércias. Conheciam nossos pontos fracos e
atacavam sem trégua ou piedade. Cortaram nossos cabelos, deceparam nossas
cabeças e ofereceram nosso sangue aos bastardos de todas as eras. O futuro era
deles e isso nos ensinavam enfiando à estocadas espinhos afiados em nossos
corações aquáticos. Desaprendemos a dançar. Desaprendemos a rezar.
Desaprendemos a simplicidade de nossas primeiras brincadeiras. A peste se
espalhava. Os piolhos nos devoravam. Nossa carne, inflamada por tudo que não
havíamos feito a tempo, fedia como fedem os esgotos das grandes cidades. Eles
sequestraram nossas divindades. Era a última parte do plano que com a frieza de
um dramaturgo perverso e audaz executavam à luz do dia. Nada tinham a esconder.
Nada temiam. O mundo era deles e só nos restava ajoelhar perante a obscuridade
que os sustentava. Nossas mãos tremiam como varas verdes. Nosso umbral de areia
movediça nos tragava sem que pudéssemos sequer assimilar as desrazões e as suspeitas
que nos conduziram até agora. Os incensos não ardiam. As velas não queimavam.
As canoas não se sustentavam sobre as lâminas de água. O veneno não aderia às
flechas. Nossos animais não mais brincavam em nossos jardins. Eles haviam
sequestrado nossos deuses e agora era tarde. Eles haviam sequestrado nossos
deuses e o aqui se convertera num campo próspero e fértil à proliferação de
toda a miséria. A tristeza corroía nossas almas e a cegueira em que nossa
distração nos mergulhara se desfazia junto às ilusões que nos permitiram seguir
vivos. A embriaguez passara rápido demais e a realidade se apresentava com uma
crueza inédita e uma crueldade despovoada de qualquer máscara ou disfarce e
isso nos parecia insuportável. O labirinto era deles e apagado foram todos os
fios que poderiam nos conduzir para além do vale de medo, culpa e lágrimas em
que estávamos mergulhados. O que estava acontecendo não podia ser real, mas
sabíamos que se tratava da única realidade possível. Nossa angústia os
alimentava. Nossa paralisia os enchia de gozo e prazer. Todas as possibilidades
estavam reduzidas a nada. Todas as esferas imaginárias que abasteceram nossas
necessidades energéticas se desfizeram no ar ao simples contato com o bafo
deles. A descrença povoou nossos reinos circulares e toda nossa fé se revelou
ser um amontoado de quimeras tolas e fantasias inúteis. Eles sorriam. Eles
cuspiam. Eles esbravejavam. Tudo era escárnio. Tudo apodrecia. Tudo se
dissolvia. Tudo nos aniquilava. Já havíamos passado por tudo aquilo, mas
havíamos nos esquecido. Não era a primeira vez que eles venciam a batalha. Não
era a primeira vez que nos despojavam de tudo o que nós éramos. Não era a
primeira vez que nos víamos reduzidos a nada. Mas havíamos nos esquecido de
tudo isso. Havíamos esquecido da façanha do Alecrim. Havíamos esquecido da
chuva de asteroides. Havíamos esquecido das memoráveis batalhas. Estávamos em
transe e eles estavam dentro de nossos corpos. Estávamos em transe e eles
estavam dentro de nossos sonhos mais íntimos. Estávamos em transe e as
trombetas deles não nos permitiam escutar nenhuma canção de ninar. As ondas do
mar de fogo chegavam aos nossos pés como outrora chegava a alegria de nossos
doces animais domésticos. A ira deles era maior que nossa esperança. As feras
estavam soltas e o campo tornara-se um lugar terrivelmente perigoso. As
borboletas sucumbiam à bestialidade dos indevassáveis. O silêncio de nossas
divindades nos evaporava e cada segundo se estendia ao infinito e prolongava o
terror que nos açoitava. Nossas armas não funcionavam. Nossas preces voltavam
ao lugar de origem como bumerangues enfeitiçados. Nossos cotovelos estavam
mergulhados em lagos de ácidos e os mais perversos e insensatos demônios
circulavam sem resistências ou obstáculos pelas ruínas do que outrora foi nossa
floresta sagrada e nossos templos adoráveis. Implorávamos por chuva e a chuva
não chegava. Implorávamos por um lugar de descanso e lugares de descanso não se
apresentavam. Desejávamos um instante de trégua, mas instantes de trégua no
horizonte não surgiam. Éramos cada vez mais menos e estávamos acossados. Nossos
pés estropiados pelos paralelepípedos não encontravam forças para seguir. Não
havia para onde ir. Não havia onde se esconder. Nossa jornada chegara ao fim.
Eles venceram. Eles dominaram o labirinto. Eles nos impuseram suas sentenças e
as executaram com a frieza de um dramaturgo amaldiçoado e ressentido. Nossos
caminhos estavam fechados e nossas oferendas não eram recebidas pelo senhor de
todas as encruzilhadas. Nossas mãos tremiam. Nossa carne queimava em brasas.
Nossos sonhos estavam convertidos em pesadelos indecifráveis. Nossas crianças
nos olhavam com aflição e nós não encontrávamos reação que as apaziguasse.
Nossos animais estavam enfermos e morriam sem que encontrássemos maneira de
confortá-los. Tudo nos recordava que era tarde demais e que todo nosso otimismo
se perdera irremediavelmente no coração das trevas. Tudo nos recordava que era
tarde demais e que nossa terra prometida se perdera na fugacidade do vento.
Tudo nos recordava que só nos restava o vale de lágrimas das antigas profecias.
Tudo nos recordava a supremacia deles. Tudo nos recordava a nova hegemonia.
Tudo nos recordava o tempo que desperdiçamos celebrando o que ainda não
possuíamos. Tudo nos açoitava e a aflição de nossas crianças multiplicava a
nossa dor. O selo deles estava impresso em cada sinal da peste que se abatia
sobre nossos animais. A nossa horta estava morta. O nosso campo se transformara
num piscar de olhos numa terra árida e a sequidão dela se entranhava em cada
célula dos novos corpos que habitávamos agora. Fazia frio e não encontrávamos
agasalhos. Tínhamos fome e não encontrávamos alimentos. Queríamos orar e
vigiar, mas nos foram roubadas as palavras e os gestos. Nossa jornada chegara
ao fim e sequer podíamos recordar dos apocalipses anteriores pelos quais
havíamos passado. Tudo estava reduzido à cinzas. A nossa dor era imensa, a
nossa devoção não encontrava alvo. Como um bumerangue o nosso descaso e as
nossas pretensões retornavam ao vazio onde floresceram. Eles sequestraram o que
éramos. Roubaram de nós o que fomos. Apossaram-se de nossos corpos e alteraram
irremediavelmente nossa capacidade de sentir. Eles se fizeram a matéria com a
qual poderíamos moldar o que viríamos a ser. Eles se tornaram o que somos.
Nossa distração os fez crescer. Nosso esquecimento os alimentou. As brasas do
ódio que trouxeram consumiram nossa imaginação. Eles eram muitos e se
reproduziam como vermes sob a lama. Nossa impotência se fez maior que a nossa
capacidade de veneração. E as doenças se alastraram por nossas vilas e aldeias
sem que sequer chegássemos a compreender as desrazões do que ocorria. Era tarde
demais. Queríamos morrer e a morte não chegava. Queríamos desistir e os nossos
corpos já não obedeciam. Queríamos descer uma terceira vez aos infernos e as
portas dos infernos não se abriam. Nossos desejos estavam distantes demais da
realidade e eles haviam se convertido em realidade numa velocidade rápida
demais. Andamos distraídos por muito tempo e isso era imperdoável. Eles eram
implacáveis e aprendemos isso da pior maneira possível. Eles eram senhores das
nossas náuseas moribundas e nossas náuseas eram tudo o que nos restava. Nossos
corações sangravam e não havia remédio que estancasse a sangria desatada. A
noite seria longa e tenebrosa, só a inércia movia nossos passos pelos caminhos
de trevas que adentrávamos. Não havia estrelas no céu. Não havia ciclos lunares
a nos orientar. Não havia astros se movendo na abóbada celeste. Nossas velas
não acendiam. Nossos incensos não perfumavam. Nossa distração e nosso
esquecimento não eram perdoados. O vale de lágrimas se expandia sobre a terra
prometida como um buraco negro se expande num universo recém-parido por uma
divindade sequestrada. Nossos membros não obedeciam a nossos comandos. Nossos
sentimentos não correspondiam às nossas necessidades. Nosso espírito não
habitava nosso corpo e nossas mentes se dispersavam como uma boiada que
atravessa uma terrível tempestade. As feridas não cicatrizavam. Não tínhamos
ervas para cozinhar os chás. O nosso medo alimentava a voracidade dos que nos
consumiam. Estávamos enferrujando e nossos ouvidos não suportavam os ruídos que
produziam o movimento de nossos corpos oxidados. Era tarde demais. Eles beberam
nosso sangue. Eles comeram nossa carne. Eles torturaram o nosso sol até a
morte. Eles nos deixaram vivos apenas pelo sádico prazer de assistir a nossa
procissão se arrastar eternamente nessa árida terra que nos ofertaram. Fomos
nos transformando em escamas de um lagarto sem órgãos. Fomos nos transformando
numa serpente inútil que vaga sem direção buscando as asas que lhe foram
decepadas. Fomos transformados em esqueletos descarnados que com suas pupilas
dilatadas vociferam às margens de ilhas brutalmente dissecadas. E como
desejando com incalculável avidez romper de maneira total e irreversível qualquer
elo entre nós e nossas expectativas chegaram os cavaleiros leprosos das galáxias
ocidentais e montaram seus acampamentos e ceifaram os vestígios da última e
mais primitiva de todas as constelações que por séculos e séculos houvera sido nosso
acalanto, nossa promessa, nossa aprazível morada.
nuno g.
Cachoeira, 13 de julho de 2019.
Me senti no hoje e depois no ontem. A última primitiva constelação familiar se deu aqui nas Américas. E seus escritos traduzem pra mim o sentimento desta trágica herança deixada pelos nossos ancestrais. Sim sequestraram nossas divindades, sequestraram nossos sonhos, sequestraram nosso futuro. Tamo fu. Vida que segue. Agente inventa novas divindades, novos sonhos, novos futuros. ABS
ResponderExcluirUau!! Dolorosamente lindo...
ResponderExcluirFantástico!
ResponderExcluirE o terrível pesadelo acabou. Acordamos desesperados, suando frio, saindo do breu, das trevas mais profundas, corremos até a janela, e o sol brilhava intensamente, e de joelhos agradecemos a Deus que tudo não passou de um terrível pesadelo.
ResponderExcluirSensacional texto prezado nuno g. Arrepiante, contundente, desesperador. Todos estamos atônitos, imóveis, em catarse. Parabéns, tens o dom da escrita e tudo que escreveste é perturbador. Uiiii...