Acenderam
um primeiro fogo na capoeira atrás da serra. Nenhum deles sabia o nome exato
daquela capoeira e a batizaram como sendo a capoeira do Gomes, era a marca do
atum em lata que lhes serviu de primeira refeição naquela clareira onde fizeram
aquele primeiro fogo e passaram aquela primeira noite sem nada que os separasse
de um céu estrelado e infinito e misterioso e enigmático e cada um deles àquela
noite pensou em tudo o que tinha vivido até então e em cada sentimento que lhes
tocara sentir ao largo de suas vidas antes de finalmente chegarem àquela
clareira e acenderem aquele primeiro fogo e passarem a noite em claro olhando
aquele oceano de estrelas e todos ali sabiam que aquela não era uma simples
noite qualquer como todas as outras e todos ali sentiam no mais íntimo de suas
vísceras e entranhas e músculos e ossos e veias e dentro mesmo da gordura de
seus tutanos e dentro de suas próprias medulas que nada mais seria como antes e
todos olhavam em silêncio profundo e inesgotável aquelas chamas daquele
primeiro fogo e todos pensavam com seus corações contritos e fervorosos que
daqui a pouco o sol iria nascer e esse não seria um nascer do sol qualquer como
todos os outros dias de sol que viveram em suas perambulações secretas pelos
recônditos abismos e pelas crateras insondáveis pelas quais passaram nesses
anos todos em que estiveram vagando por sobre essa terra e pensavam que nunca
souberam nem chegariam a saber por quê raios de coisas vieram parar aqui neste
planeta a carregarem consigo essa estranha veneração pelos abismos e pelo verde
das folhas e pela alegria dos bichos e pelos sonhos e todos os mundos loucos
que se abrem e se revelam nos sonhos incompreensíveis que todos nós carregamos
conosco e as legiões de fantasmas que nos acompanham em longos cortejos que
emergem dos tempos passados e dos tempos anteriores aos tempos passados e dos
tempos anteriores a esses tempos anteriores trazendo consigo estandartes com
símbolos tão antigos que nada na memória daqueles homens lhe permitia capturar
o sentido que tiveram algum dia para os ancestrais de seus ancestrais que os
gravaram em couro pelos campos abertos destes sertões e pelas várzeas que
separam estes sertões do mar esverdeado e das dunas de areias brancas e das
falésias avermelhadas e dos urubus bailarinos que se alimentam de peixes que a
ressaca do mar vomita nas areias da praia. A noite foi fria e aquele primeiro
fogo foi bem mais que providencial, ainda que todos eles estivessem absortos o
suficiente em seus próprios transes e mergulhados com tal intensidade num
ritual pessoal de rememoração que em nada lhes atingia o frio e o fogo lhes
servia mais que qualquer outra coisa de guia e condutor na longa viagem pela
teia de ciclos infindáveis de mortes e nascimentos e outras mortes e outros
nascimentos e outras mortes e mistério e sofrimento e lama e por tudo o mais
que parecia definitivamente perdido e oculto na passagem inexorável do tempo e
agora sim eles entendiam que o tempo guardava sim suas dobras e nessas dobras
repousavam muitas sementes de coisas que até aquele momento pareciam esquecidas
em algum insólito rincão da vasta e efêmera eternidade em que suspenso, como
uma jangada do litoral leste da província do Siará Grande, se encontrava o
ponto minúsculo e insignificante do efêmero instante presente. Ventou muito
enquanto aqueles homens atravessavam com braçadas fortes as camadas
sedimentadas de areias de águas e de tempos: as grandes porções geográficas de
dor, mistério, lama e sofrimento com suas aprazíveis ilhas de alegria, gozo e
serenidade. Ventou muito, mas ninguém deu nenhuma importância a isso. Estavam
todos em transe e quando o sol os arrancou com violência do transe em que
estavam já não eram mais os mesmos. Tiveram que trabalhar duro. Levantar as
choupanas, cobrir com palhas os abrigos clandestinos e varar as madrugadas
recebendo as armas e os alimentos e as flores que lhes chegavam quando a
escuridão se fazia absoluta e cobria tudo com os seus setecentos véus. Não se
olhavam rosto-a-rosto, nunca. Não queriam saber nada uns dos outros, nada. Isso
seria perigoso demais. Era a lei da guerra. Todos ali sabiam que na tortura
toda carne se trai e não saber de nada era a única medida de segurança eficaz
para evitar o infortúnio das traições. Esqueceram os próprios nomes e as datas
dos próprios aniversários. Aprenderam a beber água diretamente do rio.
Aprenderam a caçar, a pescar e a ler os sinais celestes. Foram descobrindo
dentro de si mesmos uma nova humanidade e uma nova maneira de seguir caminhando
sobre a terra e um novo jeito de sentir e de comer e de trepar e de executar
cada gesto do corpo e de olhar e de assimilar cada cheiro novo e começaram a
aprender a falar com as pedras e a escutar as pedras, a falar com o rio e a
escutar o rio, a falar com a noite e a escutar a noite e começaram a entender
que cada um deles era só uma ínfima parte de uma gigantesca teia de seres vivos
interligados uns com os outros por uma enigmática e gigantesca teia de afetos e
de energias e que tudo que acontecesse com cada um deles afetaria diretamente a
todos eles e às pedras e ao rio e à noite e ainda assim sabiam que não deveriam
olhar rosto-a-rosto nem saber o nome nem a data de nascimento nem qualquer
outra coisa que seria caguetada sob a violência covarde dos instrumentos de
tortura espalhados como armadilhas nas rotas incertas dos seus destinos. Comeram
atum em lata e nomearam aquela capoeira com a alcunha de capoeira do Gomes.
Acenderam um primeiro fogo e desceram em botes precários de madeira a cachoeira
das eras e viram coisas de outros tempos e ouviram vozes de outras épocas e
sentiram cheiros de mundos desconhecidos e devoraram alimentos que nunca haviam
vistos e se deram conta que eram feitos de matérias e elementos que nem
imaginavam serem passíveis de existência e caminharam em círculos em volta do
segundo fogo e caminharam em círculos em volta do terceiro fogo e assim por
diante até que perderam a conta e já todos os fogos eram um só fogo que ardia e
queimava e transformava em pó tudo o que precisava ser reduzido à cinzas e eram
muitas as coisas que clamavam por regressar ao seu estado originário, à sua
condição de cinzas. Mas o fogo era também algo perigoso, sua fumaça poderia
denunciar o acampamento, poderia trazer ao coração daquela irmandade os
instrumentos metálicos de morte e de tortura, poderia trazer a ira e a
impiedade e a cólera e o delírio dos obscuros. Os processos corriam seguindo
ritos sumários, a cegueira e o rigor agiam de maneira implacável e as execuções
se converteram em rotina e os deuses que cuidavam da justiça foram ofendidos,
foram insultados, foram condenados ao exílio perpétuo e desde o exílio seguiram
trabalhando e mantiveram vivas suas esperanças e redobraram suas forças e
aprenderam coisas que não sabiam e se lembraram de outras que já haviam
esquecido e viram vagalumes piscando e piscando e piscando e ouviram onças cantando
e cantando e cantando e sentiram as gotas grossas da chuva molhando seus
cabelos molhando suas pálpebras molhando as palhas de carnaúba com que cobriram
o corpo e foram planejando centenas e centenas de pequenas e delicadas
insurreições e foram acendendo milhares de centelhas de pensamentos de revolta
e de angústia e zilhões e zilhões de faíscas de sonhos febris de amor e de
serenidade enquanto as pedras deseducavam cada célula de seus corpos biológicos
e cada sentimento de suas estruturas psíquicas e cada espécie do ecossistema
próprio que servia de habitat às suas indevassáveis individualidades. Tudo isso
se passou atrás daquela serra, dentro daquela neblina. O mês era o de agosto e
chovia muito. A capoeira eu sei bem onde fica, mas não posso te levar lá. No
meio dela, enterrado a sete palmos de fundura, tem uma lata enferrujada de
atum. Isso é tudo o que me foi permitido te revelar hoje. Morte, mistério, dor,
sofrimento, lama e o heroísmo e as pequenas glórias de homens comuns que
decidiram abandonar tudo que já não fazia mais sentido e se reunirem em volta
do fogo e escutarem as línguas da pedra e do fogo e que foram levados por essas
línguas através de ruínas e de paisagens decrépitas e puderam assim sobreviver
àqueles tempos de violência e de instrumentos metálicos de tortura e de
traições gratuitas e de bizarras vulgaridades. Aqueles homens nunca mais seriam
os mesmos. Eles estavam definitivamente alterados. Haviam sido arrancados de
suas órbitas e agora dançavam com a grande serpente e agora sorriam como
crianças e agora sabiam que não haveria mais volta e que o planeta seguia
girando e que eles estavam soltos na via láctea e suas raízes e âncoras haviam
sido decepadas para sempre pela guilhotina implacável do tempo. Isso é tudo o
que me foi permitido te revelar hoje. Isso é tudo. Essa é a parte que me foi
permitido te contar sobre o caminho de dor, sofrimento, lama e pequenas glórias
e pérolas de serenidade que percorreram aqueles homens em sua longa jornada de
regresso ao jardim dos homens comuns. Adiós.
nuno
g.
Cachoeira,
30 de julho de 2019.
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