para os que chegam
quando cessam as tempestades
Assentei
um santo neste chão de barro quando tinha onze anos. Assentei um santo neste
chão de barro quando tinha onze anos e fiz dele o fundamento do destino todo.
Assentei um santo neste chão de barro, enterrei seu corpo e com a fúria de meu
joelho esquerdo soquei esse mesmo chão de barro. Soquei este chão de barro até
que em pedra se fizesse o barro deste chão onde assentei um santo quando tinha
ainda onze anos. E quando em pedra se converteu esta parcela de chão de barro
nela esfreguei esse meu joelho esquerdo que de tanto atritar nesse chão de
macio barro transfigurado em áspero mineral jorrou sangue como em Caldas do
Jorro jorra termal água. E esse sangue que jorrou de meu joelho esquerdo
irrigou cada veio do áspero mineral que outrora fora macio barro. E de cada
veio desse chão de pedra que um dia fora chão de barro floresceu uma flor negra
que por intuição e ignorância batizei de tulipa de mil fogos. E em cada uma
dessas flores negras que por intuição e ignorância batizei de tulipa de mil
fogos surgiram mil pétalas que na forma na textura e na viscosidade se
assemelhavam a mil línguas de algum animal selvagem. Reparei que meus pelos se
arrepiavam à simples proximidade dessas pétalas que pareciam línguas que
cresceram em flores negras que batizei de tulipas e que nasceram da pedra em
que se converteu o barro com que enterrei o corpo do meu santo e todos os seus
íntimos pertences. Acendi uma vela, acendi um incenso, rezei em língua que
desconheço a gramática, a sintaxe, a fonética e a origem. Os hieróglifos que
gravei nesta pedra com o sangue que jorrou de meu joelho esquerdo eram a
transcrição de um canto muito arcaico e severo. Os hieróglifos que gravei nesta
pedra áspera com o sangue que jorrou de meu esquerdo joelho em chamas eram a
transcrição musical do uivo de três indecifráveis onças selvagens pertencentes
a distintas raças e habitats. Uma era parda, outra era russa e a terceira
pintada. Cada uma delas trazia gravada em cada pata uma digital inusitada. A
primeira trazia como selo uma espécie de cruz duas vezes cortada e que na raiz
trazia um círculo que não se fechava. A segunda trazia uma chave enfeitiçada
que cambiava de cor a cada mirada e que parecia feita de movediça areia de tal
maneira que sua embocadura se movia como águas de maré. A terceira trazia uma
pirâmide que de tão branca meus olhos identificaram rapidamente como sendo
feita de sal. Com essas patas imprimiram essas onças selvagens todos os
arabescos que envolvem os hieróglifos que inconscientemente eu gravara naquela
pedra em que se convertera o barro da parcela de chão onde assentei meu santo e
todos seus pertences íntimos forjando assim o fundamento e o labirinto daquele
que viria ser meu inescapável destino. Acendi nessa pedra uma vela e sua chama
era azul. Acendi nesta pedra uma vela e de sua chama azul escapavam faíscas
azuis. Acendi nesta pedra uma vela e na lâmina das faíscas azuis que escapavam
de sua chama também azul vi refletidos os olhos da primeira onça, a parda. Seus
olhos eram da cor das esmeraldas verdes que os navios negreiros contrabandeavam
da África e desembarcavam nos portos destas colônias onde seguimos assentando
santos e convertendo em ásperas pedras macios chãos de barro. Acendi uma
segunda vela e vi os olhos da segunda onça e estes eram brancos como são
brancas as hóstias imaculadas depois de pelas mãos do vento consagradas. Acendi
uma terceira e derradeira vela que possuía uma cera que ao invés de parafina
era constituída por átomos e moléculas oriundas de distintos objetos
astronômicos amalgamados por uma seiva escura de forte odor e sabor forte que
em muito me lembrava a resina de uma planta amazônica que um pajé de beiços
esticados me ensinara num sonho que tive em algum momento de minha primeira
infância. Assentei um santo neste ponto exato, suspenso no meio do nada e
equidistante de toda e qualquer estrela de nossa humilde galáxia. Assentei um
santo neste sertão e como não tinha lágrimas o reguei com sangue, com esperma e
com a primeira saliva do amanhecer. O sangue se fez flor, do esperma nasceram
as três onças e a saliva cristalizou como cristaliza o mel das jandaíras em sua
mais primitiva florada. Desses cristais me alimentei por anos alternando épocas
de voracidade e parcimônia. Desses cristais retirei as substâncias que me
compõem e que formataram este corpo tal como se apresenta hoje. Nunca utilizei
outra ferramenta para colher esses cristais que não as próprias mãos e, por
escassez permanente de água, nessas mãos sempre havia algo de poeira algo de
suor algo da indevassável e inquebrantável veneração pelo santo assentado neste
chão de barro. Esqueci de tudo, menos disso. Me afastei de todos, menos deste
santuário de barro em pedra transubstanciado. Minha fé, meu coração e todos os
palimpsestos que produzi foram sendo ali depositados. Minha fé, meu coração e
esses palimpsestos todos foram se sedimentando de acordo com seus pesos suas
texturas e a substância de suas cores e vontades originando esse santuário. Mil
foram os degraus que eu percorri no interior deste labirinto. Mil foram os
náufragos que eu vi serem engolidos pela ausência de águas. Mil foram as
serpentes que encontrei decepadas nas margens dos degraus dessa escada
espiralada. Mil foram os dias que se passaram desde que assentei aquele santo
neste chão de barro. Mil foram os anos que se passaram enquanto eu
intencionalmente arranhava meu joelho esquerdo nesta pedra áspera. Mil foram as
lágrimas que não chorei. Mil foram as ausências que se transfiguraram em mil
fantasmas e cada um deles era portador de mil presságios. Nunca cortei os
cabelos, nunca fiz a barba. Tive mil corpos, habitei mil moradas. Sangrei como
goza um vulcão quando em erupção sente esvaziar-se do insuportável calor do
magma em estado líquido. Sangrei como um bode sacrificado na sombra de uma
oiticica em homenagem ao nascimento de uma criança. Sangrei como sangra um
cometa ou um asteroide que desgarrado de sua órbita se decompõe ao se aproximar
da atmosfera de algum planeta. Sangrei como uma fada de pulsos abertos quando a
borboleta das terras geladas do norte lhe rói a pele, os cílios e os ossos.
Sangrei como sangram as onças selvagens quando sonham com seus ancestrais que
viveram o tempo da chegança dos conquistadores com suas carabinas, suas
cegueiras e o relinchar ensurdecedor de seus cavalos. Sangrei e suei, suei e
sangrei. E o meu corpo se fez pífano. E o meu joelho se fez abismo: buraco
negro, ferida aberta e permanente cavilação. E o meu corpo se fez mangue e de
mangue foi se transformando em semi-árido e logo regressou a ser sertão. E o
meu corpo seguiu pulsando em absoluta arritmia e foi se desfazendo de suas
folhas de suas cascas e de todas as cicatrizes por ele espalhadas. O meu corpo
se tornou abruptamente florescente e começou a irradiar ondas de mil cores. O
meu corpo se fez chão de barro se fez chão de pedra se fez onça parda se fez
onça russa se fez onça pintada. O meu corpo se fez corpo do santo por minhas
mãos assentado. O meu corpo se fez canto se fez olho e se fez cera de espécie
rara. O meu corpo se fez assentamento, destino e fundamento de uma tragédia
silenciada. Enfim, o meu corpo se fez nada e desprovido de corpo pude regressar
ao leito pedregoso do rio seco que foi minha primeira morada. Desprovido de
corpo pude regressar até onde, apesar de nunca ter saído, nunca havia estado.
Desprovido de corpo pude outra vez abraçar as pessoas por quem nutria algum
afeto. Desprovido de corpo pude brincar de ser vegetal e sonhar os sonhos
selvagens que só os vegetais podem sonhar com plenitude. Desprovido das
ausências sedimentadas de meu santuário fui separando os grãos de poeira e as
gotas de suor em minhas mãos acumuladas. Minha mãe, meu pai e o gavião foram os
primeiros órgãos que voltaram a ganhar forma. E eram formas de unhas de algum
predador já extinto. Eram unhas negras, roxas e afiadas como nenhuma outra lâmina
neste mundo tenha sido vista. Eram unhas que feriam fundo a carne e sentiam
imenso prazer em atravessar as camadas de pele, músculo e gordura das presas
que caçavam. Rompiam veias, nervos e artérias com a mesma facilidade com que
uma faca quente atravessa um tacho de manteiga. Foi destas unhas que voltei a
nascer. Elas foram o embrião deste novo corpo que agora se apresenta. Minha
mãe, meu pai e o gavião. Os três dispostos numa encruzilhada numa tal forma que
denunciava todo o carinho investido na preparação daquela oferenda. O segundo a
nascer foram os joelhos e depois os cotovelos e depois os pulsos e todas as
dobradiças do novo corpo. Depois o sangue depois o sêmen depois o suor e depois
todos os líquidos. Quando enfim senti que tinha novamente língua lambi minha
nova pele e senti o seu sabor. Quando enfim senti que possuía dentes outra vez
mordi e mastiguei meus próprios músculos a fim de reconhecer seu sabor. Quando
senti uma vez mais narinas no meio da imensidão da cara ainda sem rugas cravos
ou espinhas aspirei todo o oxigênio do universo e gozei com a ardência deste
oxigênio ocupando os vácuos de minhas entranhas. As montanhas eram enormes, o
mar era imenso e o meu novo corpo era pequeno como o corpo de uma formiga. As
montanhas eram enormes, o mar era imenso e o meu corpo era escuro como o
não-lugar onde enterrei o corpo de meu santo e seus pertences íntimos. Tudo
estava fora do lugar e só sobrevivera meu destino e meu fundamento. As flores
negras e o canto das onças. As montanhas e o mar. O sangue e o suor. A matilha
de espíritos decaídos em sua jornada solitária pela terra do invisível. Os
fragmentos de astros desfeitos na implosão que se seguiu à sua entrada na
órbita de nosso miserável planeta. E aquelas unhas fantasmagóricas parindo meus
novos corpos que se alinhavam em fila indiana como se fossem membros de alguma
corte marcial de zumbis produzidos pela magia do vodu. Minha testa se inclinou
até a pedra e suavemente se deixou arranhar por sua aridez. E durante mil anos
minha testa sangrou ao atrito com a pedra que um dia foi barro, onde um dia
assentei meu santo. Até que a pedra tocou meu crâneo e descobriu que este era
feito de matéria mais dura que ela. E como se fosse uma broca de diamante meu
crâneo foi comendo a pedra e esta foi esfacelando em grãos de areia que em
seguida se transformavam em macio barro. E quando nada mais restava que não
fosse barro acendi uma vela e um incenso. Vi onças, flores negras e úmidos
cristais. Comi os cristais com as mãos como um dia havia comido o feijão de
Ogum. E enquanto comia os cristais sentia minha pele se arrepiar como se
arrepiara cada vez que eu me aproximara das flores negras que batizei de
tulipas. Ouvi as onças cantarem e vi os invasores chegarem com suas carabinas e
sua sede inextinguível. O cavalo branco ainda relinchava na neblina e meus pés
haviam percorrido os cem mil degraus da escada espiralada no interior de
samsara. Estendi a mão e levei meu último corpo até o chão de barro onde quando
tinha onze anos assentei um santo. Ele disse adeus, uma lágrima escorreu pela
minha face e sem dizer palavra nenhuma me recolhi ao silêncio fulgurante de um
sol completamente desconhecido suspenso num mar de éter, desprovido de
fundamento, de destino e de qualquer promessa ou raiz que lhe conferisse
lógica, sentido ou razão.
nuno
g.
Cachoeira,
01 de julho de 2019.
Um monstro!
ResponderExcluirÉ preciso viver antes de tudo. É preciso escrever, antes de tudo. Dale Nuno!!!
ResponderExcluirRenascimento.... Como dizia Belchior, no presente, a mente, o corpo é diferente;
ResponderExcluirE o passado é uma roupa que não nos serve mais... beijos, te amo, porra!
Um transe místico e poético.
ResponderExcluirpeguei viagem
ResponderExcluirEscrita mordaz, fina, certeira, cada vez mais afiada.
ResponderExcluirCaríssimo Nuno,
ResponderExcluirque texto incrível!