quarta-feira, 3 de julho de 2019

Visão agônica de um cavalo branco relinchando na neblina ou os cem mil degraus da escada espiralada no interior da roda de samsara


para os que chegam quando cessam as tempestades

  Assentei um santo neste chão de barro quando tinha onze anos. Assentei um santo neste chão de barro quando tinha onze anos e fiz dele o fundamento do destino todo. Assentei um santo neste chão de barro, enterrei seu corpo e com a fúria de meu joelho esquerdo soquei esse mesmo chão de barro. Soquei este chão de barro até que em pedra se fizesse o barro deste chão onde assentei um santo quando tinha ainda onze anos. E quando em pedra se converteu esta parcela de chão de barro nela esfreguei esse meu joelho esquerdo que de tanto atritar nesse chão de macio barro transfigurado em áspero mineral jorrou sangue como em Caldas do Jorro jorra termal água. E esse sangue que jorrou de meu joelho esquerdo irrigou cada veio do áspero mineral que outrora fora macio barro. E de cada veio desse chão de pedra que um dia fora chão de barro floresceu uma flor negra que por intuição e ignorância batizei de tulipa de mil fogos. E em cada uma dessas flores negras que por intuição e ignorância batizei de tulipa de mil fogos surgiram mil pétalas que na forma na textura e na viscosidade se assemelhavam a mil línguas de algum animal selvagem. Reparei que meus pelos se arrepiavam à simples proximidade dessas pétalas que pareciam línguas que cresceram em flores negras que batizei de tulipas e que nasceram da pedra em que se converteu o barro com que enterrei o corpo do meu santo e todos os seus íntimos pertences. Acendi uma vela, acendi um incenso, rezei em língua que desconheço a gramática, a sintaxe, a fonética e a origem. Os hieróglifos que gravei nesta pedra com o sangue que jorrou de meu joelho esquerdo eram a transcrição de um canto muito arcaico e severo. Os hieróglifos que gravei nesta pedra áspera com o sangue que jorrou de meu esquerdo joelho em chamas eram a transcrição musical do uivo de três indecifráveis onças selvagens pertencentes a distintas raças e habitats. Uma era parda, outra era russa e a terceira pintada. Cada uma delas trazia gravada em cada pata uma digital inusitada. A primeira trazia como selo uma espécie de cruz duas vezes cortada e que na raiz trazia um círculo que não se fechava. A segunda trazia uma chave enfeitiçada que cambiava de cor a cada mirada e que parecia feita de movediça areia de tal maneira que sua embocadura se movia como águas de maré. A terceira trazia uma pirâmide que de tão branca meus olhos identificaram rapidamente como sendo feita de sal. Com essas patas imprimiram essas onças selvagens todos os arabescos que envolvem os hieróglifos que inconscientemente eu gravara naquela pedra em que se convertera o barro da parcela de chão onde assentei meu santo e todos seus pertences íntimos forjando assim o fundamento e o labirinto daquele que viria ser meu inescapável destino. Acendi nessa pedra uma vela e sua chama era azul. Acendi nesta pedra uma vela e de sua chama azul escapavam faíscas azuis. Acendi nesta pedra uma vela e na lâmina das faíscas azuis que escapavam de sua chama também azul vi refletidos os olhos da primeira onça, a parda. Seus olhos eram da cor das esmeraldas verdes que os navios negreiros contrabandeavam da África e desembarcavam nos portos destas colônias onde seguimos assentando santos e convertendo em ásperas pedras macios chãos de barro. Acendi uma segunda vela e vi os olhos da segunda onça e estes eram brancos como são brancas as hóstias imaculadas depois de pelas mãos do vento consagradas. Acendi uma terceira e derradeira vela que possuía uma cera que ao invés de parafina era constituída por átomos e moléculas oriundas de distintos objetos astronômicos amalgamados por uma seiva escura de forte odor e sabor forte que em muito me lembrava a resina de uma planta amazônica que um pajé de beiços esticados me ensinara num sonho que tive em algum momento de minha primeira infância. Assentei um santo neste ponto exato, suspenso no meio do nada e equidistante de toda e qualquer estrela de nossa humilde galáxia. Assentei um santo neste sertão e como não tinha lágrimas o reguei com sangue, com esperma e com a primeira saliva do amanhecer. O sangue se fez flor, do esperma nasceram as três onças e a saliva cristalizou como cristaliza o mel das jandaíras em sua mais primitiva florada. Desses cristais me alimentei por anos alternando épocas de voracidade e parcimônia. Desses cristais retirei as substâncias que me compõem e que formataram este corpo tal como se apresenta hoje. Nunca utilizei outra ferramenta para colher esses cristais que não as próprias mãos e, por escassez permanente de água, nessas mãos sempre havia algo de poeira algo de suor algo da indevassável e inquebrantável veneração pelo santo assentado neste chão de barro. Esqueci de tudo, menos disso. Me afastei de todos, menos deste santuário de barro em pedra transubstanciado. Minha fé, meu coração e todos os palimpsestos que produzi foram sendo ali depositados. Minha fé, meu coração e esses palimpsestos todos foram se sedimentando de acordo com seus pesos suas texturas e a substância de suas cores e vontades originando esse santuário. Mil foram os degraus que eu percorri no interior deste labirinto. Mil foram os náufragos que eu vi serem engolidos pela ausência de águas. Mil foram as serpentes que encontrei decepadas nas margens dos degraus dessa escada espiralada. Mil foram os dias que se passaram desde que assentei aquele santo neste chão de barro. Mil foram os anos que se passaram enquanto eu intencionalmente arranhava meu joelho esquerdo nesta pedra áspera. Mil foram as lágrimas que não chorei. Mil foram as ausências que se transfiguraram em mil fantasmas e cada um deles era portador de mil presságios. Nunca cortei os cabelos, nunca fiz a barba. Tive mil corpos, habitei mil moradas. Sangrei como goza um vulcão quando em erupção sente esvaziar-se do insuportável calor do magma em estado líquido. Sangrei como um bode sacrificado na sombra de uma oiticica em homenagem ao nascimento de uma criança. Sangrei como sangra um cometa ou um asteroide que desgarrado de sua órbita se decompõe ao se aproximar da atmosfera de algum planeta. Sangrei como uma fada de pulsos abertos quando a borboleta das terras geladas do norte lhe rói a pele, os cílios e os ossos. Sangrei como sangram as onças selvagens quando sonham com seus ancestrais que viveram o tempo da chegança dos conquistadores com suas carabinas, suas cegueiras e o relinchar ensurdecedor de seus cavalos. Sangrei e suei, suei e sangrei. E o meu corpo se fez pífano. E o meu joelho se fez abismo: buraco negro, ferida aberta e permanente cavilação. E o meu corpo se fez mangue e de mangue foi se transformando em semi-árido e logo regressou a ser sertão. E o meu corpo seguiu pulsando em absoluta arritmia e foi se desfazendo de suas folhas de suas cascas e de todas as cicatrizes por ele espalhadas. O meu corpo se tornou abruptamente florescente e começou a irradiar ondas de mil cores. O meu corpo se fez chão de barro se fez chão de pedra se fez onça parda se fez onça russa se fez onça pintada. O meu corpo se fez corpo do santo por minhas mãos assentado. O meu corpo se fez canto se fez olho e se fez cera de espécie rara. O meu corpo se fez assentamento, destino e fundamento de uma tragédia silenciada. Enfim, o meu corpo se fez nada e desprovido de corpo pude regressar ao leito pedregoso do rio seco que foi minha primeira morada. Desprovido de corpo pude regressar até onde, apesar de nunca ter saído, nunca havia estado. Desprovido de corpo pude outra vez abraçar as pessoas por quem nutria algum afeto. Desprovido de corpo pude brincar de ser vegetal e sonhar os sonhos selvagens que só os vegetais podem sonhar com plenitude. Desprovido das ausências sedimentadas de meu santuário fui separando os grãos de poeira e as gotas de suor em minhas mãos acumuladas. Minha mãe, meu pai e o gavião foram os primeiros órgãos que voltaram a ganhar forma. E eram formas de unhas de algum predador já extinto. Eram unhas negras, roxas e afiadas como nenhuma outra lâmina neste mundo tenha sido vista. Eram unhas que feriam fundo a carne e sentiam imenso prazer em atravessar as camadas de pele, músculo e gordura das presas que caçavam. Rompiam veias, nervos e artérias com a mesma facilidade com que uma faca quente atravessa um tacho de manteiga. Foi destas unhas que voltei a nascer. Elas foram o embrião deste novo corpo que agora se apresenta. Minha mãe, meu pai e o gavião. Os três dispostos numa encruzilhada numa tal forma que denunciava todo o carinho investido na preparação daquela oferenda. O segundo a nascer foram os joelhos e depois os cotovelos e depois os pulsos e todas as dobradiças do novo corpo. Depois o sangue depois o sêmen depois o suor e depois todos os líquidos. Quando enfim senti que tinha novamente língua lambi minha nova pele e senti o seu sabor. Quando enfim senti que possuía dentes outra vez mordi e mastiguei meus próprios músculos a fim de reconhecer seu sabor. Quando senti uma vez mais narinas no meio da imensidão da cara ainda sem rugas cravos ou espinhas aspirei todo o oxigênio do universo e gozei com a ardência deste oxigênio ocupando os vácuos de minhas entranhas. As montanhas eram enormes, o mar era imenso e o meu novo corpo era pequeno como o corpo de uma formiga. As montanhas eram enormes, o mar era imenso e o meu corpo era escuro como o não-lugar onde enterrei o corpo de meu santo e seus pertences íntimos. Tudo estava fora do lugar e só sobrevivera meu destino e meu fundamento. As flores negras e o canto das onças. As montanhas e o mar. O sangue e o suor. A matilha de espíritos decaídos em sua jornada solitária pela terra do invisível. Os fragmentos de astros desfeitos na implosão que se seguiu à sua entrada na órbita de nosso miserável planeta. E aquelas unhas fantasmagóricas parindo meus novos corpos que se alinhavam em fila indiana como se fossem membros de alguma corte marcial de zumbis produzidos pela magia do vodu. Minha testa se inclinou até a pedra e suavemente se deixou arranhar por sua aridez. E durante mil anos minha testa sangrou ao atrito com a pedra que um dia foi barro, onde um dia assentei meu santo. Até que a pedra tocou meu crâneo e descobriu que este era feito de matéria mais dura que ela. E como se fosse uma broca de diamante meu crâneo foi comendo a pedra e esta foi esfacelando em grãos de areia que em seguida se transformavam em macio barro. E quando nada mais restava que não fosse barro acendi uma vela e um incenso. Vi onças, flores negras e úmidos cristais. Comi os cristais com as mãos como um dia havia comido o feijão de Ogum. E enquanto comia os cristais sentia minha pele se arrepiar como se arrepiara cada vez que eu me aproximara das flores negras que batizei de tulipas. Ouvi as onças cantarem e vi os invasores chegarem com suas carabinas e sua sede inextinguível. O cavalo branco ainda relinchava na neblina e meus pés haviam percorrido os cem mil degraus da escada espiralada no interior de samsara. Estendi a mão e levei meu último corpo até o chão de barro onde quando tinha onze anos assentei um santo. Ele disse adeus, uma lágrima escorreu pela minha face e sem dizer palavra nenhuma me recolhi ao silêncio fulgurante de um sol completamente desconhecido suspenso num mar de éter, desprovido de fundamento, de destino e de qualquer promessa ou raiz que lhe conferisse lógica, sentido ou razão.

nuno g.
Cachoeira, 01 de julho de 2019.

7 comentários:

  1. É preciso viver antes de tudo. É preciso escrever, antes de tudo. Dale Nuno!!!

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  2. Renascimento.... Como dizia Belchior, no presente, a mente, o corpo é diferente;
    E o passado é uma roupa que não nos serve mais... beijos, te amo, porra!

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  3. Escrita mordaz, fina, certeira, cada vez mais afiada.

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