sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sonhatório cachoeirano

 para Paulo de Jesus & João de Moraes,


O passado é uma roupa que não nos serve mais

Belchior.

Nesta cidade os deuses falam pelas bocas dos loucos.

Nunca sabemos se são loucos os deuses.

Nem se são deuses os loucos.

Nesta cidade quando conversamos nunca sabemos quem realmente conversa.

Nem sabemos o que se assenta quando assentamos algo.

A única coisa que se sabe ao certo aqui é que não somos deuses.

E não raras vezes a honestidade nos faz perguntar se não somos loucos.

Nesta cidade atravessamos os reinos de Tempo com certa ingenuidade.

E sem percebermos cruzamos distraidamente as fronteiras do Inframundo.

Nesta cidade as nuvens compõem uma forma de escrita.

E a chuva borra memórias sem desnecessárias delicadezas.

Nesta cidade os cães, os gatos e os loucos vêm e vão, vão e vêm.

Sem saber de onde, sem saber pra onde.

Sem saber por que, sem saber pra quê.

Nesta cidade o rio corre ao contrário, fugindo do mar.

Levando flores brancas e amarelas aos sertões da terra.

Nesta cidade o passado escapa ao olhar desinteressado dos historiadores.

E se faz matéria viva à sombria imaginação dos poetas.

Nesta cidade feijão é comida que se come sem pressa e com as mãos limpas.

Esta cidade é uma floresta de sonhos que estão além da nossa vã compreensão.

Esta cidade é uma clepsidra de vidro.

E tudo nela flui – como as insones areias de um febril deserto habitado por nômades tuaregues...

nuno g.

Toróró, 25 de agosto de 2023.

 

 

 

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