para Night Day & Claudio Reis,
Nunca estamos sós.
Nunca andamos sós.
E existe sempre outra coisa acontecendo enquanto caminhamos.
Senhora da Lama: rogai por nós que recorremos a vós.
Seus dois filhos. O roxo de seus olhos.
Os centros cerimoniais que a fúria de Tempo transformou em corações em ruínas.
Uma foto antiga, uma conversa à beira do rio sobre quando a vida se estilhaça.
E essa cegueira que nos ataca a visão aguardando que a Senhora das Doces Águas nos lave as retinas.
Poderia ser África ou algum rincão da Arábia.
Mas é essa cidade.
É esse quebra-cabeça de memórias que não se enquadram.
São esses desejos em perpétua guerra e esse arco nos céus.
Essas feridas que nos ensinam pela dor.
Essas serpentes que nos curam com veneno.
E a beleza que nos atravessa como um raio.
A voz das onças. A voz do vento. A algazarra tapuia.
Atravessando cada passo seu meu irmão.
Rumando ao Mucuripe onde mágoas encontram seu túmulo de salgadas águas.
Rumando à Pitanga onde tudo é queda e vertigem.
E todas as gentes que andam conosco.
Sonhando os sonhos que não pudemos sonhar.
Empurrando o Sol ao pino.
Ressuscitando a Lua das coxas sob os véus de Isís.
Acendendo as estrelas que nos movem enquanto estamos distraídos.
Em cada passo seu agora irmão.
Se estenda o meu chão sem chão.
E aquela promessa minha que só agora você pode entender plenamente.
Nunca estivemos sós.
A família que escolhemos foi escolhida antes de nascermos.
Ela caminha contigo.
Ela caminha comigo.
Ela nos leva sempre a outro lugar tão distinto do que planejamos ir.
A cidade que te asfixia agora é a mesma que asfixia os que caminham comigo.
Nunca nada esteve perdido.
E o Nada é um baú antigo onde se guardam muitas coisas.
Castanhas paraenses, marinheiros apaixonados e outras maneiras de filosofar e orar.
Teus pensamentos chegam aqui numa velocidade que me assusta.
E rogo à Senhora da Lama que me ensine mãos para te abraçar à distância.
Como me abraçastes enquanto eu enterrava Ian sozinho em Cruz das Almas.
Nunca esqueci o silêncio do coveiro se retirando.
Não havia ninguém mais naquele cemitério.
Eles vieram, dançaram, comeram, beberam e cravaram um espinho em meus testículos.
Era a única maneira de me fazer chorar.
Irmão, agora você tem uma estrela.
Isso não é fábula, não é lenda, não é história pra boi dormir.
Issó é caminho e horizonte.
Não estamos sós.
Nada está perdido.
Seu coração é maior que toda a dor do mundo.
E a estrada do Infinito aguarda o motor de sua moto.
Irmão, meu chão é seu chão.
Você não está só.
Tudo que acontece uma vez seguirá sempre acontecendo.
Caminho e horizonte.
Os sinos das igrejas de Belém dobram por ti agora.
Chovem flores brancas em meus sonhos.
E quando ouço um velho amigo falar de sua tristeza às margens do rio Pitanga.
Te escuto pronunciando o impronunciável.
Que a Senhora que nos fez da lama.
Apascente teu coração.
Lave teus olhos.
E faça nascer entre os cacos do teu ser a Flor da Aurora do Entendimento.
nuno g.
Toróró, 11/08/23
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