domingo, 13 de agosto de 2023

Romance de formação


  para João de Moraes


acumulei tantos não-saberes

que quase me afoguei na pia de batismo

figuras de linguagem são indomáveis

como onças no cio

ou os paralelepípedos dessa cidade

havia uma pedra no coração da praça

e um acarajé de realidade brilhando no sol ao meio-dia

certa feita um galo escapou de seu quintal

figuras de fé são indomáveis

estilo e sorte não são coisas que se entregam facilmente

certa feita à calçada da Igreja você disse coisas que parecem com coisas

retorcidas são as raízes em sua busca às águas

sempre haverá um destino onde houver uma flecha

figuras de promessas são indomáveis

desacumulei tantas não-ciências

que quase me afoguei na imensidão dessa cidade

como quando você abriu o arquivo

afagou a marca da cirurgia

e tornou ao reino das coisas vivas

que parecem com coisas extraídas de pedras retorcidas

calçadas de igrejas e galos em perpétua fuga

depois da morte sempre outra morte

depois do medo o labirinto do imaginário

o que eles chamam de fábula

nessa cidade é vida, sonho e revelação

poderia ser uma feira de mercadores na áfrica

ou um barco de navegantes gregos

mas é essa cidade

inteira, íntegra, indomável

como uma cicatriz desenhando a geografia de uma cabeça

nossos mortos são indomáveis

assentamento é uma força que só os rios conhecem

quando a pele vem à flor dos nervos

a noite chega

com seus ventos e suas vísceras

e vai apascentando seus filhos

como se o anjo nunca tivesse nos abandonado

como se as lâminas e as memórias da guerra nunca tivessem se dissolvido

na sua casa, feita de pedra e terra vermelha,

haverá sempre algo não nos deixando esquecer

que todo abrigo é indomável

como uma sussuarana no cio

ou como uma estrela rebelde que abandonou definitivamente os subterrâneos...


nuno g.

Toróró, quinta-feira, 10 de agosto de 2023.

3 comentários:

  1. A sua poesia me intimida um pouco, é extraordinária. Me sinto a obviedade em pessoa, rs. Bj

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  2. Li e reli o poema. Li alto e a sonoridade das palavras me impulsionava a acreditar que a linguagem não é uma realidade, mas uma forma de reinventá-la em cada um de nós. Certamente esse é um dos mais belos poemas que eu li nos últimos tempo. Obrigada, Nuno

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