havia tendas - como nas caravanas ciganas que acampavam sob as oiticicas.
e quando acordei o sonho ainda estava lá - escorrendo em sua voz ao telefone
e se amalgamando às fotos do Velho
que esperaram quatro décadas para chegar aos meus olhos.
havia um bebê - como no dia em que me levaram na mata para conhecer Miguel.
e quando acordei as tendas ainda estavam lá e sua voz escorrendo como óleo
entre as teias e as flores e as crianças.
havia tantas camadas de febre e esquecimento sobre as pequenas coisas do amanhecer
que parecia ser impossível qualquer despertar.
havia muita água doce e uma gargalhada sincera aprisionada numa garrafa.
havia tendas e fogueiras e alguém aprendendo as primeiras letras.
sua voz escorrendo no telefone, uma fotografia antiga e um arrepio à pele.
somos o que esquecemos e sangramos para que o nada não soterre o amanhã.
somos o sangue que derramamos sobre a terra.
somos também a terra onde se erguem as tendas.
e sim, no seu sonho ela era a mais bela das mulheres daquele rio.
ela te disse como se chamava e te entregou mais uma vez a infância de Maria.
quando acordei a foto estava lá - e nela todo o passado que me foi negado.
havia lírios, sonhos e águas doces.
quando pronunciei teu nome tua voz me chegou ao telefone.
só no óleo certas esperanças alcançam sobreviver.
nuno g.
Toróró, 17 de julho de 22.
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