o mar levou pro rio
um presente pra mamãe Oxum
e o rio levou pro mar
um presente pra Yemanjá
Maria Alice
a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá
ossos frágeis e delicados e um sem-número de objetos outros
enterrados sob este chão:
escapulário de ferro
o prato fundo repleto de sangue
e o sonho dos dois caixões
a Gare de Astapovo
os pedreiros ateando fogo na cozinha
a chuva no Peixe Gordo
e o dia amanhecendo alaranjado nos olhos do jaguar enfeitiçado
ossos frágeis e delicados e um sem-número de objetos outros
enterrados entre as estrelas desta noite insaciável
a paz aqui é só uma palavra
fervendo entre outras palavras
mergulhadas no dicionário das placas tectônicas
e na larva que escorre entre as frestas
do túmulo de azulejos azuis
que não existe mais
a lagoa da Caiçara repleta de aguapés, serpentes e eguns
que insistem em remar suas canoas
entre os ossos frágeis e delicados deitados na alvorada
entoando esse coro insuportável
que rompe a harmonia das esferas
e ecoa nos cânions do Aquém e do Além
despertando a divindade asmática
e desnorteando os ponteiros da lazarenta memória
dos castiçais esfumaçados
dos aprazíveis licores
dos habitantes da cidade sem-nome
do arco-íris órfão ressuscitado
demasiadas coisas enterradas sob este chão
entre a escuridão imensa destas estrelas
o sangue do esquecimento atravessando as vértebras
de cada palavra que escrevo no ventre obtuso desta chuva
hálito tapuia & o rugido do sino da Catedral
carregados em liteira de marfim e assombramento
pelo vento Aracati que sopra desde as fronteiras do infinito
arrastando os raios da Senhora ao som dos címbalos que anunciam
a partida prematura dos deuses de ontem
e o inexorável atraso da chegança dos deuses do amanhã
o sol assenta sobre seu trono
sem que se saiba quem terá pés capazes de tocar o solo dos salões iluminados
onde as aranhas tecem e destecem os destinos
e as linhas-de-força encruzilhadas no moto perpétuo deste incansável rio
nesta maldita insônia, neste sagrado oráculo
a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá
no sinal de acesso à Barão do Rio Branco
um velho com uma guia de contas negras e azuis cruzando o tórax
exibe um papelão onde se lê em vermelho a palavra FOME
à esquerda um desses carros modelos naves espaciais
com bandeira pátria e adesivos com o nome do inominável
a palha, o mel e os olhos do Senhor das Estradas
recordando a guerra e os seus hinos
recordando o sonho do velho conde
repousando em Iásnaia Poliana
entre ossos frágeis e delicados
e um sem-número de objetos outros
esparramados sobre as cinzas do quilômetro oitenta
a palha, o mel e os olhos ávidos e sinceros do Senhor da Estrada
se movendo no interior da cidadela inexpugnável da insônia
e nos caleidoscópicos labirintos do oráculo
a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá
o hino das águas e dos erês no açude do Bixopá
os unicórnios e jabutis dançando entre as corredeiras onde vivem os pitus da ilhota
canjica quente, pé de moleque, bolo de macaxeira, paçoca e vatapá de galinha
o hino das águas e dos erês apascentando as doces fúrias do Aquém e do Além
e a ternura impronunciável dos habitantes da cidade sem nome
a palha, o mel e os olhos ilegíveis do Senhor da Estrada
orando através de mim quando meus olhos leram outra vez a inscrição no jardim:
rua do meu pai - café negro, longo e amargo
se derramando sobre o azul-azul do céu do Iguatu
e entre as árvores do esquecimento
onde repousam ossos frágeis e delicados
escapulários metálicos, pratos repletos de sangue
e os dois caixões do sonho
a clepsidra de vidro gira mais uma vez no quilômetro oitenta
e o daimon arcaico desperta de seu torpor
gravando entre as cicatrizes as recordações de antigas atrocidades
rua do meu pai - o jardim em tudo o mesmo
Iggy Pop vagando na domingueira eternidade de sua felina existência
o mel, a água doce, o sorriso
nos protegendo da ferocidade de Tempo
nos guardando dos abandonos que abandonamos antes da alvorada
entre ossos frágeis e delicados
entre um sem-número de objetos outros
enterrados entre as estrelas reluzentes
que seguem faiscando e vibrando
nos obscuros subterrâneos dessa terra onde as promessas nunca são cumpridas.
nuno g.
russas / fortaleza, 21 a 27 de junho de 2022.
Bravo!
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