quarta-feira, 8 de março de 2017

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ei garoto não era você que sempre estava caindo fora e que sempre se ligava nas pessoas que estavam caindo fora e que simplesmente achava que tudo aqui dentro estava demasiado apodrecido e sem vida e que todo esse mau cheiro era simplesmente insuportável e que não havia nada mais que se pudesse fazer do que sair por aí e perambular tentando mover os círculos concêntricos de sua própria loucura enquanto tratava de demolir todos os pontos-de-vista que surgissem na sua frente e toda e qualquer certeza que se apossasse da sua mente ou de seu coração... Ei garoto, não era você que sempre se vestia de negro, ouvia lou reed e amava as ruínas? Não foi você que escreveu aquele poema que falava sobre flores roubadas, primeiro milhão de amores, feridas, enigmas, maconha e um certo concerto de Patti Smith?  Acho que lembro bem de você garoto: andando pelas ruas, fumando um cigarro e cantarolando i wanna be your dog. O que aconteceu com tudo isso garoto? Por que estás a chorar tão copiosamente na calçada dessa igreja? Levante a cabeça. Caia fora outra vez. Que meteoro destroçou tudo aquilo? Ao menos vejo que você ainda se veste de negro, não cortou os cabelos e ainda tem esse olhar de fuzil. Mas se percebe que a vida foi dura demais contigo. Se percebe que teus velhos sonhos estão todos arruinados e que te faltam forças para reconstruir tudo outra vez. Você soube que dylan recebeu o nobel de literatura? Você ainda escreve poemas? Como deixastes te fazer tão refém? Tão catatônico agora? Levanta garoto. Olha outra vez o horizonte. Sacode essa névoa impenetrável. Abandona essa cara sombria. Vamos garoto. A vida segue apesar de tudo. Apesar de qualquer coisa. Apesar de toda a merda que as pessoas fazem com aquelas que elas realmente gostam. O que passou com aquele garoto que falava sobre a não-interferência e que fazia ninhos com gravetos recolhidos nas beiras das estradas? Ei garoto esse não é você, esse não parece você, esse é ainda mais estranho mais triste e mais autodestrutivo do que você. Apesar de tudo nunca conheci ninguém que tivesse tanta facilidade de tocar as nuvens com as mãos como você e agora te encontro aqui chorando nessa calçada de igreja e me pergunto sobre o que realmente aconteceu contigo durante esses anos que não nos encontramos. Aceita um cigarro? Vou buscar um café pra nós... ei garoto você segue com essa cabeça baixa! Levante essa cabeça – é simples, você sabe melhor que qualquer outro, você também sabe exatamente o que está acontecendo – é simples, ela quer lhe matar, ela precisa lhe matar, não existe outra maneira dela crescer, você pode entender isso facilmente, nada cresce sem matar alguma coisa, ninguém cresce sem matar o que ama e o que amamos sempre termina por nos atacar ferozmente, você sempre soube disso garoto, erga a cabeça, respire fundo, olhe para o céu e siga – você sabe que não pode morrer agora, você sabe que a estrada ainda é sua companheira, você sabe que tudo termina mesmo escorrendo pra algum esgoto, não se deixe abater, não se deixe esmorecer, não se renda tão facilmente, ainda existe oxigênio suficiente na atmosfera, você ainda tem um coração, você ainda não perdeu toda a fé. Lá fora tem um coelho mágico te esperando pra brincar um pouco mais nos jardins do paraíso...

nuno g. 

Cachoeira, 05 de março de 17.

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