ei
garoto não era você que sempre estava caindo fora e que sempre se ligava nas
pessoas que estavam caindo fora e que simplesmente achava que tudo aqui dentro
estava demasiado apodrecido e sem vida e que todo esse mau cheiro era
simplesmente insuportável e que não havia nada mais que se pudesse fazer do que
sair por aí e perambular tentando mover os círculos concêntricos de sua própria
loucura enquanto tratava de demolir todos os pontos-de-vista que surgissem na
sua frente e toda e qualquer certeza que se apossasse da sua mente ou de seu
coração... Ei garoto, não era você que sempre se vestia de negro, ouvia lou reed e amava as ruínas? Não foi você
que escreveu aquele poema que falava sobre flores roubadas, primeiro milhão de
amores, feridas, enigmas, maconha e um certo concerto de Patti Smith? Acho que lembro
bem de você garoto: andando pelas ruas, fumando um cigarro e cantarolando i wanna be your dog. O que aconteceu com
tudo isso garoto? Por que estás a chorar tão copiosamente na calçada dessa
igreja? Levante a cabeça. Caia fora outra vez. Que meteoro destroçou tudo
aquilo? Ao menos vejo que você ainda se veste de negro, não cortou os cabelos e
ainda tem esse olhar de fuzil. Mas se percebe que a vida foi dura demais
contigo. Se percebe que teus velhos sonhos estão todos arruinados e que te
faltam forças para reconstruir tudo outra vez. Você soube que dylan recebeu o nobel de literatura?
Você ainda escreve poemas? Como deixastes te fazer tão refém? Tão catatônico
agora? Levanta garoto. Olha outra vez o horizonte. Sacode essa névoa
impenetrável. Abandona essa cara sombria. Vamos garoto. A vida segue apesar de
tudo. Apesar de qualquer coisa. Apesar de toda a merda que as pessoas fazem com
aquelas que elas realmente gostam. O que passou com aquele garoto que falava
sobre a não-interferência e que fazia ninhos com gravetos recolhidos nas beiras
das estradas? Ei garoto esse não é você, esse não parece você, esse é ainda
mais estranho mais triste e mais autodestrutivo do que você. Apesar de tudo
nunca conheci ninguém que tivesse tanta facilidade de tocar as nuvens com as
mãos como você e agora te encontro aqui chorando nessa calçada de igreja e me
pergunto sobre o que realmente aconteceu contigo durante esses anos que não nos
encontramos. Aceita um cigarro? Vou buscar um café pra nós... ei garoto você
segue com essa cabeça baixa! Levante essa cabeça – é simples, você sabe melhor
que qualquer outro, você também sabe exatamente o que está acontecendo – é
simples, ela quer lhe matar, ela precisa lhe matar, não existe outra maneira
dela crescer, você pode entender isso facilmente, nada cresce sem matar alguma
coisa, ninguém cresce sem matar o que ama e o que amamos sempre termina por nos
atacar ferozmente, você sempre soube disso garoto, erga a cabeça, respire
fundo, olhe para o céu e siga – você sabe que não pode morrer agora, você sabe
que a estrada ainda é sua companheira, você sabe que tudo termina mesmo
escorrendo pra algum esgoto, não se deixe abater, não se deixe esmorecer, não
se renda tão facilmente, ainda existe oxigênio suficiente na atmosfera, você
ainda tem um coração, você ainda não perdeu toda a fé. Lá fora tem um coelho
mágico te esperando pra brincar um pouco mais nos jardins do paraíso...
nuno g.
Cachoeira,
05 de março de 17.
Lindo!
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