quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

São Paulo vestida de preto:, por Barbara Uila

tentação fulminante rasteja

um cheiro familiar

becos e avenidas se encontrando

na calada da noite usurpa

as últimas horas do grito

dois gatos pretos que

reviram o lixo acalmando

a fome do ano todo


São Paulo vestida de preto:

bairros longínquos onde o

amor é o porteiro que abre

a porta com seu sorriso de

curinga prestes a dar o golpe


São Paulo vestida de preto:

minha terceira guerra mundial

transbordando bairros

do centro


São Paulo vestida de preto:

Santa Cecilia acendendo a

pólvora do craque


São Paulo vestida de preto:

ônibus acelerado na Faria

Lima arromba meus tímpanos


São Paulo vestida de preto:

onde o diabo carrega seu

enorme instrumento musical

e onde danço sua música em

tom de partida…



Barbara Uila

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Terra em transe, por m. frança.

para nuno gonçalves, o domador das éguas selvagens do espírito do alto jaguaribe


ele veio e seu novelo espiral
de palavras
enredos
loucos saltos no meio da rua
ele saltou
foi no paraíso de dante e voltou pelo inferno de dario
na companhia de dom sebastião
o antonio conselheiro do sertão do ceará
quixeramobim é um verso alexandrino
quisera eu ter querubins no auto de natal
deus salve a rainha porque o rei está nu
a muito tempo
só o menino, o poeta e o profeta avistaram

nunca o tempo foi para frente
por isso essa infecção
essa asia do cotidiano
esses tardios nazistas pelo campo de centeio
será a cajuína cristalina de teresina a salvação
ou vamos ficar com a rendição dos astronautas

se a vida é um coquetel molotov
e vertigem da tv é um mandamento
quero é sambar no benfica com meu amor
e
como já dizia
belchior: viver e entender a vida é muito melhor.

salve salte dance meu louco diamante.


m. frança

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

sólo un poco aquí... Nezahuacóyotl.



Yo Nezahualcóyotl lo pregunto: ¿Acaso de veras se vive con raíz en la tierra?
Nada es para siempre en la tierra: sólo un poco aquí.
Aunque sea de jade se quiebra, aunque sea de oro se rompe,
aunque sea plumaje de quetzal se desgarra.
No para siempre en la tierra: sólo un poco aquí.

Nezahuacóyotl.

domingo, 9 de outubro de 2016

ode à chapada do araripe & à cavalaria sertaneja



para claudio reis & marialice & virginia

era noite, fazia calor e um anjo percorria a madrugada da cidade de Kraterdam
era noite, alta lua despencava sobre os fósseis
era noite, havia uma fogueira acesa e estávamos ali
os três, inteiros, cada um com suas próprias sentenças no olhar
era noite, fazia calor, éramos seis mãos em busca
                                       éramos a lenta respiração da terra
havíamos retornado a pouco da casa da bruxa
no alto da serra
lá comemos, tomamos cervejas, fumamos e conversamos e conversamos e
alice brincou com os animais do jardim
deliciou-se com o escorregador de madeira e o balanço de pneu
desfrutou do balançar da rede
recebeu com graça os paparicos que as bruxas grandes devotam às recém-iniciadas
o guru, em silêncio, apenas sorria
o guru, sem ansiedade, me apresentava outra vez o horizonte
e sentia certo regozijo ante a cegueira que a desesperação instalara em meu coração
o guru, desacreditava aquela desmedida toda
                                                     desfazia inocências
a bruxa fez feijão verde
cozinhou cuscuz tapioca fez chá & café no bule
cozinhou carneiro jogou o tarot e recebeu as senhoras pra tirar o terço
levamos uma nossa senhora azul numa casinha de madeira
uma ressaca leve
& ossos & cinzas & catarro & sede & lembranças boas
faz tempo que essa noite passou
mas hoje algo dela respira aqui
algo do horizonte que se abriu naquela noite
&
que foi o começo de um fim que parecia não ter fim...


nuno g.
Cachoeira, 09 de outubro de 2016.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

poema sem começo & sem fim



I.

hare krishna hare daime hare dharma
ogum guerreia contra o exército invencível de kali yuga
carros de som mendigando comprando extorquindo votos
o rio, alheio, respira a saudade que canta para meu coração
nas várzeas do Jaguaribe: teus olhos sorriem ao som dos stooges:
as mães são fascinantes: seja quando seduzem, seja quando se matam
as crianças tomam banho no quintal
a neta do velho punk que um dia homenageou a rainha britânica com uma pistola de sexo
ilumina teu banho
perfuma as águas que minam de teu corpo hacia minha sede...
ônibus incendiados ao norte do cais da ilha
g. se recusa a ir caminhar na praia
escrevo um poema sem começo & sem fim
reinvento minha pele invocando tuas aparições em meus sonhos
me reúno ao aprendiz de bruxo em sua memorável escalada ao popocateptl
em seus passeios circulares pelo inframundo
as crianças seguem se divertindo no quintal
sigo escrevendo o poema sem começo & sem fim
o ruído dos carros segue implorando votos
a nudez deste sábado te converteu num mantra recitado às margens de um paraguassú
com trejeitos de jaguaribe...
araçagi: que essa oferenda de tiquira dendê e baião-de-dois
abra nossos atalhos, nossas veredas:
que as divindades sertanejas
– arcaicas, obscuras, indecifráveis, ásperas, enigmáticas & incoerentes –
abençoem e protejam as clareiras & capoeiras abertas nas várzeas
no mar de carnaúbas
nos olhos das oiticicas
na chama de querosene:
língua bifurcada do candeeiro...

II.

este poema é para ti e para qualquer resquício de teu ceticismo
esse poema é o ácido que dissolve hesitações e afugenta receios
esse poema é uma chuva de pétalas de açucenas sobre teus cabelos bagunçados pelas minhas    
                                                              mãos
este poema é um casarão de pedra que construí para ser vossa mais agradável morada
             – delicado abrigo de teu sutil encantamento –
esse poema é uma nuvem de borboletas amarelas bendizendo teus passos na escuridão
esse poema é o antídoto exato para a melancolia de tuas domingueiras tardes nas terras do
                                                               açaí
esse poema é uma engrenagem que num passe de mágica abole a distância que nos separa
esse poema é uma praia banhada por água doce estendida aos teus pés
este poema é o sol que acaricia teu corpo
este poema é o sal do desejo consultando as varetas de caule de milefólio
       sobre o momento propício para se misturar ao teu mel
esse poema é minha maneira de te amar devagarinho
esse poema é o canto de minha sede e o onírico labirinto onde aprisionaram a deusa
                                          veneração
este poema é um tucano sobre um mandacaru ou um cardeiro ou um galho de ipê florido
que semeei em teus cílios ou em teus lábios num instante
de infinita felicidade & absoluta distração
este poema é teu gozo sussurrando:
sofrendo de urgências meu poeta?
esse poema é um conto sufi extraído do sermão proferido por sidarta gautama
       nas ruínas do himalaia
esse poema é a memória e a redimissao de uma noite solitária entre os guarás rosados
       de uma Alcântara silenciosa em que o único que se escutava
       era os estalos os gemidos os sussurros de um casal de estranhos
       fodendo no chalé ao lado...

III.

meu coração é um oráculo em erupção...
ternura, carinho e desejo beirando tuas tardes...
meu coração é as velas do mucuripe saindo pra pescar...
meu coração é um colibri andino recitando chelsea girl acompanhado
     por um cortejo de improváveis quenas...
meu coração é as crianças brincando de índios fazendo transações com gnomos & bruxas...
meu coração ...
meu coração...
meu...


cachoeira, 01 de outubro de 2016.
nuno g.

duas águas, uma jangada: sobre um vento chamado terral...




ou
a coruja branca, a muralha da cidade e o feiticeiro amordaçado
ou
a ilha, o náufrago, as margens de uma estranha oração
ou
meus passos, suas memórias e uma antiga devoção à escuridão
ou
pés peregrinos & joelhos sangrando de tanto chão
ou
teus lábios ressuscitando minha pele
tua fenda despertando meus olhos
teus brincos de prata derretendo sobre minhas mãos
                                                             sobre o punhado de areia & solidão
no teu sorriso a lua de minha sede
e o horizonte incerto, contrito
  em profunda meditação
uma tigela de arroz integral
e uma canção que diz
ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro...

nuno g.