para Lari,
um vento frio varre a cidade
meia-lua no céu
a criança entrega ao velho a flor sem-cor dos medos imaginários
Lima, 05 de abril de 2025.
para Lari,
um vento frio varre a cidade
meia-lua no céu
a criança entrega ao velho a flor sem-cor dos medos imaginários
Lima, 05 de abril de 2025.
para Maria Zilá Lima Gonçalves,
(in memoriam)
Também de coisas desastrosas somos feitos: nós e o mundo.
Dona Antônia sonhou com aipim e comentou: aipim é vela!
A morte à espreita na margem do rio:
a morte e outras serpentes sonâmbulas.
Temos que estar preparados para tudo: o mundo e nós.
Alguns aipins cozinhavam e outros ficavam duros: nisso o espírito do sonho.
E as lágrimas desceram dos olhos vermelhos de Hermenegildo.
Seu aceno quase não escondia o ferimento.
Aos pés de minha avó, em sua memória e presença.
Encostei delicadamente a cabeça e morri mais uma vez.
A noite trouxe a calmaria das unhas ainda cheias das areias com que enterraram o ódio.
E no céu uma lua que olhava minha cabeça aos pés de minha avó.
A noite trouxe a certeza que as certezas não existem.
E a estrela que ensina que enterrar importa tanto quanto desenterrar.
Uma vela é mais que suficiente para nos recordar a relevância do escuro.
nuno g.
Toróró, 01/08 de março de 2025.
sonhei com um banquete, um banho de rio e com pessoas insuportáveis
(muitas pessoas insuportáveis)
sonhei com cárceres onde eu ficava aprisionado por engano
e amaldiçoei despertar antes de saber como era minha vida de prisioneiro
sonhei com perseguições implacáveis, assassinatos se desdobrando em outros assassinatos
e com a carta do diabo, da morte e do enforcado
sonhei com todas as mentiras que me soterraram a infância
e com a sucessão de pessoas insuportáveis que se satisfaziam sendo ainda mais insuportáveis
atravessei todos esses sonhos como um fantasma atravessa uma parede de vidro
sabendo que do outro lado da redoma existe um jardim povoado de pássaros
onde fascistas não conseguem respirar
onde mentiras não florescem
onde o silêncio só se rompe quando a palavra é necessária
sonhei milhares de sonhos se transmutando em poemas
sonhei com todos os passos do longo caminho da mediunidade
sonhei com o amor e a promessa e a chuva
sobre os campos de ervas e pedras sonâmbulas que guardam a história do mundo
sonhei com as mãos da insônia insistindo em agarrar a fumaça dos cigarros
e com os poemas eróticos que nunca cheguei a escrever
sonhei com o parque rio branco, com a praia de iracema antiga
e com navios de guerra e pirataria
sonhei com ondas esverdeadas como o lodo ou a esmeralda
e despertei na primeira noite de lua cheia depois do alinhamento dos planetas
era quase-março e eu estava quase-vivo
raios de sol escorriam do meu nariz
e a esperança verde seguia passeando solitária na cozinha de minha casa
sonhei com Cruz & Sousa, Augusto dos Anjos e Álvares de Azevedo
e fiquei extático ante o fogo como se nada na vida fosse outra coisa que não matéria sonhada
sonhei com punks caminhando na estrada
e com o suave movimento de uma relva que amanhece antes mesmo de nascer
antes mesmo de nascer...
nuno g.
Toróró, 11 de fevereiro de 2025.
Os mortos não envelhecem.
Os rios também não - e foi um rio que me disse isso.
(toda palavra é crueldade)
todo silêncio também
A lua é um espelho.
Quem me ensinou a língua dos dragões não está mais aqui.
Talvez nunca tenha estado.
Minha sede amanhece todas as noites.
Uma parte de mim nunca dorme.
A outra é sono contínuo.
Existe uma árvore do outro lado da cicatriz.
nuno g.
toróró, 04 de fevereiro de 2025.
para lari,
"meu passado era um rio maldito"
William Seward Burroughs
Todos os dias penso na morte.
Quando chove, quando faz sol, quando está nublado.
Todas as noites penso na morte.
Quando sonho, quando não sonho, quando não durmo.
O rio corre. O céu chora. A casa respira em silêncio.
Não estamos mais no deserto.
Tudo está povoado.
Abro as janelas, os gatos entram.
Esquento água para o café.
Atento a cada gesto que amanhece.
Reúno os fragmentos dos sonhos que me povoaram.
Seu pai, Luiz Nova, Clóvis e uma extensa praia mexicana.
Tudo se move o tempo todo.
O que aproxima e o que afasta são um só e o mesmo impulso.
O silêncio sobe e desce a escada de madeira.
Como se fosse um gato.
Como se fosse possível que todas as coisas fossem outras.
Como se fosse desejável que todas as coisas fossem de outra maneira.
Tempo significa ação incessante, movimento perpétuo.
Alice e Assucena brincam.
Perseguem as co-cós em cada janela.
Voltei a sentir medo no meu coração.
Voltei a sentir medo nas minhas carnes.
Sigo sentindo o estranho e fascinante desejo de abandonar este mundo.
Os primeiros ruídos amanhecem.
Reúno os fragmentos de todas minhas frustrações.
Alice arrasta a mala no quarto.
Garfield procura lagartixas na varanda.
Todo o tempo penso na morte.
Na vida que há na morte.
No que a existência da morte nos obriga a fazer.
Hoje é domingo.
Chove e ainda sonho.
Embora saiba que todos os sonhos são mesmo feitos de sexo.
Agora me interessa apenas o que não é sexo no sonho.
Ou seja: o que não é sexo no sexo.
O deserto ficou para trás.
Estamos pisando em terra úmida.
Mangue de terra roxa onde as crianças se lambuzam e se divertem.
Restou pouco, muito pouco, de mim desde que a gira iniciou seu movimento.
Senti vertigens, calafrios, pânicos indescritíveis.
Eles narraram meu corpo até essa manhã de domingo e chuva.
Foram podando tudo que não pertencia à árvore que sou.
Alice regressa a seu quarto.
Não sei o que faz agora.
Não sei se ler ou se voltou a adormecer.
Ouço a vozinha cheia de ternura de Assucena subindo os degraus.
Ouço cada gota da chuva que cai no telhado.
A Pina entra no quarto de Alice.
Penso na morte. Na minha morte. Na morte dos que amo.
Como tenho feito todos os dias.
Penso em tudo que a morte me obrigou a fazer.
Penso em cada poema que escrevi até hoje.
Penso no deserto em que nos encontramos.
E volto à certa praça de Feira de Santana.
Tenho um coco entre as mãos.
Você vomita.
Enquanto esperamos que qualquer coisa venha de qualquer lugar nos curar.
Talvez tenha vindo de nós mesmos.
Talvez tenha vindo das estrelas.
Talvez tenha vindo do fundo do mar.
Talvez, talvez, talvez...
Parece que essa sentença guarda o máximo de certeza que conseguimos tocar com as mãos.
Ou com a língua ou qualquer outra parte do corpo.
Deixo que a chuva toque meus cabelos.
Deixo que o domingo se infiltre em minha oração.
Reúno os fragmentos de deserto que estão aqui ainda.
E com eles vou tecendo os fios da morte em busca das máscaras da vida...
nuno g.
Toróró, 12 de janeiro de 2024.
Os furúnculos que atormentam os suicidas
O sol que incendeia o juízo
A torpeza que paralisa os débeis
A insanidade que reluz os delírios dos gênios
O som do ventilador na madrugada
A delicadeza das flores selvagens
E a esperança que esse esquimó pousado sobre meu ombro esquerdo
Revelará a qualquer instante o sentido exato de sua presença
Tudo aqui é antigo
O amor o amor o amor e as trevas de onde brota todo amor
A suavidade a suavidade a suavidade e o engano onde arde tudo que é suave
E essa estrela vermelha carregada por um condor machucado
À espreita de um passo em falso
Ou de um súbito instante de iluminação
Tudo aqui é antigo
Essa memória primitiva que nos protege de nós mesmos
E a permanente saudade de tudo que não chegamos a viver...
nuno g.
Ioróró, 18/12/24
Tudo aqui é antigo
O corpo de Hart Crane se dissolvendo no mar
E as luzes dos vaga-lumes no cio
Os beija-flores que entram pela janela
O choro dos bebês
A sede e a fome de mistério
Tudo aqui é antigo
Os vitrais que sobreviveram aos terremotos
As pílulas que o andarilho leva ao bolso
E o mormaço que acompanha nossos passos
Tudo aqui é antigo
As velas que nossas mãos trêmulas insistem em acender
A procissão de eguns que dançam em torno à árvore de nossas mirações
E a insônia que nos protege de nossos próprios espantos
Tudo aqui é antigo
Como o vento dos mitos mais antigos
Como a tempestade que aguarda a hora de desabar sobre nossas cabeças
Como os cabelos de Andrômeda, a princesa etíope
Tudo aqui é antigo
Tudo aqui é memória de um coração forasteiro
Tudo aqui é marulho e arrebentação
Como o fogo que em cinza transmuta todas as coisas
Tudo aqui é antigo movimento de um velho ferrorama
Vagando perpetuamente do Nada ao Nada
Até que nos trilhos não haja memória alguma das ruínas do mar
Nem dos ossos das tempestades
nuno g.
Toróró, 18 de dezembro de 2024.
Tudo aqui é antigo
Esses cacos de cristos de cerâmica e parafina
Que encantam arqueólogos
Que enfeitiçam antiquários
Que mergulham em estado cataléptico toda sorte de alquimistas e falsários
Tudo aqui é antigo
Tudo aqui são ruínas ossos e ruínas
Essas cartas de baralho esbranquiçadas pelo sal dos mares
Esses mapas de céus imaginários com suas constelações de medos e fúrias
Esses transeuntes de passos desajeitados e sobressaltados
Tudo aqui é antigo
Essas sombras, essas águas, esse trem em meus sonhos
E essa biblioteca que não termina de incendiar
Tudo aqui é ornamento à base de luzes arcaicas
Como essas fotografias de Pedro Juan num puteiro de São Paulo ou da Barra do Ceará
Como essas árvores e esses presépios e nossas mãos sujas tentando tocar a promessa
Tudo aqui é antigo
Essa lua cheia, essa chuva de meteoros, essas palavras ciganas
Essa quentura, esse bolor, essa atmosfera de fascismo e impunidade
Tudo aqui é antigo
Como o som dos carapanãs de Iquitos
O cheiro de sexo escorrendo pelas paredes
Gotejando entre as frestas do telhado
Enquanto o anjo Azul segue sobrevoando a noite em que nos afogamos...
nuno g.
Toróró, 17 de dezembro de 2024.
Em queda perpétua, se apresentou assim: Jezabel, senhora das insistências e de tudo que é turvo e irremediável. Em queda perpétua, contínuo estado de ausência de si, silhueta em permanente estado de cintilância, cigana. Jezabel, senhora detentora do saber amar o que em si é detestável e de tudo que é queda, ruína e sofreguidão: assim se apresentou. Antes, muito antes, do nascimento de Tempo, seu filho. Jezabel, a que com plumas fere e que em sonhos firma os pontos do Destino e de toda cisma inexorável. Em queda perpétua, a que traça círculos concêntricos e comanda desde sua casa de lama toda devoração, a que amplifica e faz ecoar todos os vestígios de tudo que por qualquer razão tenha sido condenado ao esquecimento. Em queda perpétua, assim partiu. E nenhuma coincidência há que o tenha feito na mesma forma em que chegou. Os encantados animais de fogo e a noite sobre a qual reina são testemunhas vivas de sua dança que, embora breve, foi suficientemente capaz de restaurar a memória de como chegamos ao caos e de como nasceram as enfermidades, os ódios e todas as fúrias. Jezabel - a criança que chora e te acompanha aninha o que resta de sagrado no desespero; onde tudo é sombra sua queda se revela como condição de possibilidade de alguma luz: ainda que uma luz frágil, trêmula, quebradiça e exausta ante a recorrente palidez estampada à face dos que a ti recorrem: palidez que denuncia o peso do medo e o absurdo do espanto que os movem a prostrar-se à serena ansiedade dos teus pés.
nuno g.
Toróró, 29 de novembro de 2024.
Vá comer merda! - disse Judite antes. Quando no sol ainda não ardia o fogo e a Serpente não havia separado as cores e definido os limites, os contornos, as fronteiras precisas de cada uma delas. Em sombra e penumbra, as palavras de Judite reverberaram inaugurando o mundo dos sons e abriram caminho à dissipação da névoa e da neblina. Estreito rastro apenas iluminado por tênues e frágeis fagulhas. Seu eco atingiu Alzira e uma certa ciência de que todo futuro antes de ser futuro é, de alguma forma sinuosa e sutil, passado, a permitiu antever uma tarde de pôr-do-sol, bistecas fritas, cervejas geladas e mágoas acesas à beira-mar.
nuno g.
Toróró, 28 de novembro de 2024.
Soubemos por um telefonema. Uma vez mais a vida me recordando das coisas que são maiores, imensamente maiores, que nós. Arrumamos as coisas e fomos à capital. Recordo o gramado verde e um imenso deserto amarelo se abrindo diante de meus olhos. Neste deserto nós brincávamos, crescíamos, abandonávamos todas as coisas perecíveis e seguíamos por uma estrada repleta de pequenos animais saltitantes. Olhávamos as estrelas, fazíamos fogueiras, celebrávamos rituais em línguas desconhecidas e dançávamos músicas que em nada recordavam o lugar de onde havíamos vindo. Encontrávamos vários peregrinos no caminho e com eles dividíamos os alimentos, as vestes, a lama e o lodo. Depois que o caixão desceu à terra o deserto amarelo foi engolindo tudo. Até minhas pupilas foram invadidas por aquela cor. Arrumamos outra vez as coisas e regressamos ao sertão. Guardei em meu coração a memória daquele caminho e a certeza de que onde quer que ele me levasse meus passos seriam sempre insuficientes: não havia mais sequer mínima diferença entre estar só ou habitar a multidão. Havia apenas o amarelo mais intenso que conheci e a incômoda sensação de que a danação eterna era algo mais que uma desgastada metáfora entre as cáries das beatas da igreja.
nuno g.
Toróró, 23 de novembro de 2024.
Estive por séculos subindo e descendo aquela rua estreita. Entre o calor e as flores minhas esperanças de reencontrar meu avô e minha infância tornavam sempre a se renovar. A voz do tio Edson no púlpito da matriz pedindo a deus que me desse força para entender o que não poderia ser entendido. As lágrimas sem-fim de minha avó escorrendo pelos meus cabelos e o cântico perturbador e exausto das onças agônicas me acompanhando, me protegendo, me forçando a empunhar outra vez a pá de areia e enterrar entes queridos. Naquele vai-e-vem sem-sentido fui entendendo que felicidade e paz eram palavras tão inúteis quanto as palavras das aulas de catecismo. Nada acontecia naquele livro de memórias fragmentadas onde estive aprisionado por séculos. As fúrias ressuscitadas, o gavião real e o jaguar encantado apenas me exigiam paciência e rigor. Severas eram suas maneiras de ensinar e pouco-a-pouco fui entendendo como se gestam distâncias, como opera a violência do silêncio e como em sementes já habitam árvores. Raras vezes me ausentei de refazer a diário aquele caminho: o que entre fantasmas vive estranha em tudo essa displicência e arbitrariedade que em todos os lados se apresenta como vida e cotidiano. Na guerra em que cresci a febre, os calafrios e a insônia eram irmãos gêmeos e o lugar mais aprazível era o sótão onde, por sorte, conheci esse morcego que me apascenta o inviolável desejo de nunca mais estar aqui outra vez.
nuno g.
Toróró, 23 de novembro de 2024
Depois de tempos surgindo em forma de pássaro laranja, Hermenegildo regressou em sua forma de pássaro azul. Naquele silêncio entre a margem ocidental e a margem oriental do rio suas asas exuberantes desenharam figuras geométricas e esboços de seres ainda não nomeados. A delicadeza de seu voo só encontrava parentesco naquela delicadeza que conhecemos quando nos aproximamos de Arturo Bandini. Rumores e pressentimentos foram se expandindo desde os suaves movimentos de suas asas, anunciando o fim da grande noite. Apenas o silêncio. Os gatos. Os primeiros raios de sol deitando-se sobre a lâmina do rio. Apenas o silêncio, ancorado sob o leito das entranhas minerais da terra. Apenas o silêncio, onde ecoa a voz de Tempo. Apenas o silêncio, onde se pode escutar a resposta dos pássaros aos apelos irremediáveis da moça Caetana. O silêncio, apenas o silêncio. E ao longe, muito longe, os ecos do trote da montaria de Hermenegildo cruzando a serra da Esperança.
Entre o azul e o laranja havia um segundo pássaro com uma lua presa ao bico. Havia também uma árvore carregada de estrelas. Sereno é o caos após o abandono de todas as coisas que nos impulsionavam ao grito. Sereno é o grito do trovão que anuncia a tempestade. Hermenegildo, em sua fugacidade e solitude, é todas essas coisas a um só tempo. Margem oriental, margem ocidental, lua, pássaro, grito, trovão e tempestade. Hermenegildo é o caos e a serenidade. Em seus sonhos as feiticeiras são onças e as onças são feiticeiras. Havia também um terceiro pássaro, mas sobre este não possuíamos permissão para dizer nada além do fato público e notório que em seu ninho repousavam ausências, esquecimentos e todos os sonhos que se apagam de nossas memórias ao amanhecer.
nuno g.
Toróró, 20 de novembro de 2024.
Tudo em Rebeca é suave fúria. Sua aversão ao mar e a tudo que saiba a sal e espuma. Tudo em Rebeca é aproximação e espanto e, consequentemente, fatídica memória do dia em que meus pés afundaram nas várzeas de piçarra. Quando animal é onça e metamorfose regida por intuição e sinestesia. Rebeca sobreviveu. Rebeca sobreviveu. Rebeca traz cílios e mãos de quem sobreviveu. Rebeca traz cabelos que não param de crescer e unhas afiadas como garras de gavião selvagem. Rebeca me sonha e sonha um mundo impossível de existir. Nesse mundo não há diferença entre crianças e estrelas. Neste mundo não há espaço, brecha ou distância entre a música das esferas e a delicadeza de nossos ouvidos. Rebeca, onça e cabra a um só tempo. Fêmea e espelho onde se reflete toda a história do esquecimento. Rebeca, azul como o céu de Iguatu. Vermelha como a piçarra das várzeas do baixo Jaguaribe. Verde como o frágil esqueleto da ilha onde reina a Rainha do Ignoto. Rebeca, a que cativa os homens e os bichos e as plantas. Rebeca, a que tem raízes fincadas no útero da pedra. Tudo em Rebeca é fúria e suavidade. Sua solidão nos protege de nossas próprias sombras e na umidade de seu hálito flores roxas parecem borrar as inúteis fronteiras que nos impedem de caminhar para além da miserável redoma onde tudo é silêncio, exílio e condenação.
nuno g.
Toróró, 19 de novembro de 2024.
Essa noite não sonhei com Rebeca, embora tenha sentido sua presença no quarto ao despertar. Penso ter visto sua sombra descendo a escada e se movendo em direção ao rio, mas tenho plena consciência ter se tratado de um pensamento. Com todo o perigo que traz um pensamento, essa fenda aberta por onde passam os seres dos outros mundos quando nos querem acariciar a pele. Apesar da idade, Rebeca caminhava com passos seguros e não demonstrava sinais de cansaço ou exaustão. Ao contrário de mim que pareço ter carregado todas as montanhas da terra por um período de tempo infinitamente superior às minhas capacidades físicas e psíquicas. Não consegui reter na memória as vestes de Rebeca, suas cores se perderam na morosidade de meu despertar. Ao folhear o jornal matinal as mesmas notícias sobre o relógio da guerra do fim do mundo aceleradas pelo presente de grego do presidente gagá ao presidente tam-tam. Talvez eu tenha sonhado que não possuía mais dentes. Talvez Rebeca os tenha levado consigo. Talvez haja alguma maneira saudável e eficiente de cruzar a terra devastada. Talvez, mas só talvez, amanhã minha antiga imagem volte a se refletir no espelho d'água do rio que foge à fúria do mar.
nuno g.
toróró, 18 de novembro de 2024.
para Maria Alice & Claudio Reis,
Ontem, regressando da aula, encontrei um cassaco na estrada.
No mesmo exato lugar onde dias atrás um gato e uma serpente se engalfinhavam.
Talvez fosse o mesmo cassaco que eu e Alice encontramos em Arraial d'Ajuda anos atrás.
Naquele dia saímos para olhar estrelas na praia.
Caminhamos da vila ao chalé e no caminho encontramos o pequeno gambá.
Sempre recordo dessa noite e da fé que aquelas estrelas acenderam em mim.
Ontem, fiquei a recordar de um carnaval antigo em Campina Grande.
Troquei um exemplar de o sol e a maldição pela obra de Augusto dos Anjos.
Possuído pela fúria do Sétimo e pela euforia desmedida.
Saciei minha sede com todo o álcool do mundo.
E entre budistas, daimistas, hare krishnas, devotos do Sai Baba e toda sorte de místicos.
Saí recitando poema negro pela Serra da Borborema.
Naquela noite, ainda presenciei a cítara enfeitiçada de Alberto Marsicano.
Exausto e completamente embriagado, desmaiei num canto da praça.
No outro dia despertei sob o olhar dos transeuntes atarefados.
Ao meu lado o livro de Augusto dos Anjos.
Uma vaga recordação que meu livro agora repousava na estante de um sebo paraibano.
E a mão fraternal de Claudio Reis me erguendo das frágeis ruínas de meu desamparo.
Tomamos um caldo e mais uma vez pensei em de aí por diante:
nunca mais escrever versos...
nuno g.
Toróró, 09/11/24
Em silêncio chegou antes das nove. Serviu-se de uma xícara de café forte. Pernas cruzadas e olhar perdido no horizonte. Nos narrou seu encontro com o gato e a serpente, de como se engalfinhavam na estrada de terra e da sua cisma sobre se brincavam ou se tentavam matar um ao outro ou se faziam as duas coisas simultaneamente. Vestido de chita e algodão enfeitado com rendas e bordados. Foi a primeira vez que olhamos Efigênia, embora algo nela me fizesse desconfiar que há muito nos olhava desde algum rincão do além. Assemelhada às nuvens, cabelos emplumados e tecida em muitas rugas. Era toda silêncio e coragem, daquelas que nos exige a vida quando não mais suporta em si o desejo intenso de mais vida. Retiramos os alfinetes da mesa e servimos torradas amanteigadas de pão dormido, como quem serve certas esperanças ainda empoeiradas pelos anos em que dormiu à sepultura. Uma aranha correu no teto da casa e um vento com extensa biografia cruzou as margens daquela primeira aproximação entre seres que sabem à memória do escuro e que carregam vastidões entre as linhas ciganas das palmas das mãos.
nuno g.
Toróró, 08/11/24
para Maria Assucena,
Hoje soube quanto viemos de longe.
Andávamos a cavalo num mundo muito distante daqui.
Havia um rio e em suas margens.
Hermenegildo, Alzira, Judite, Adélia e outros seres.
A sereiazinha de betelgeuse às águas.
Tua mãe me entregava já montado.
E cavalgávamos tempo adentro, sonho adentro.
Aquele rio se chamava poesia, aquelas várzeas recendiam à história.
Despertei segundo antes que o milho pregasse na panela.
nuno g.
Toróró, 01/11/24