sexta-feira, 10 de outubro de 2025

canto para meus amigos

meus amigos estão nus e dançam no deserto onde a morte não existe

estão famintos e sedentos e brincam com animais estranhos que saltam de um oásis a outro

como os pensamentos e os sonhos e os afetos

e todas as coisas que se permitem ser atraídas para fora do leito determinado

meus amigos estão outra vez reunidos em volta do fogo

e conversam sobre o terror em Gaza sobre o amor sobre a fúria que vem das estrelas

e sobre coisas incompreensíveis sobre sentimentos impronunciáveis

e fazem amor com as pedras com as árvores com as águas

trazem os corpos lambuzados de mel e em seus sorrisos abundam pressentimentos

de uma atmosfera ardente e cheia de esperança e de luz e de oxigênio e de desejo

e de uma carne que arde tão intensamente 

que chegamos a desconfiar que é algo além de carne

e em seus olhos orbitam planetas astros meteoros e outras feras inomináveis

meus amigos estão mais famintos que os famélicos da terra

mais sedentos que os grãos de areia do deserto

onde habitam e descobrem que a morte nunca existiu

e que a vida é um sonho interminável e que todos os labirintos são invenções

de divindades cruéis e perversas que nos amam tanto e com tanto fervor

que nos obrigam a nos arrastarmos pelos subterrâneos obscuros

em busca de objetos sagrados e misteriosos

mesmo sabendo que a única coisa realmente sagrada e misteriosa

é a força do poema é a força do sexo é a força que une uma geração à outra

é a força que pulsa na carta do enforcado enquanto a luz exibe sua exuberância no céu

da cidade cinza construída às margens do mar no coração do deserto

onde voltamos a nos encontrar para celebrar o fim do mundo

e a posse da sabedoria do abandono e a descoberta de que sempre estivemos perdidos

e de que nada disso era misterioso nem sagrado e que apesar de tudo

restará sempre essa força que conduz nossos corpos ao sexo e nossas mãos

ao poema e enquanto cantamos aos ossos enferrujados vislumbramos automóveis verdes

cruzando a noite a madrugada e a fumaça das ervas que fumamos e fumamos

desesperadamente como quem sabe que apesar de não existir a morte está presente

e a qualquer momento pode nos abraçar e nos levar do deserto

e enterrar tudo que somos em algum lugar extremamente branco e frio

onde as mãos do Anjo Azul não poderão chegar

e o canto das onças e do vento Aracati não poderá ser escutado

e as feras nos avessarão as vísceras e estaremos outra vez distantes

em Milão no Aquiraz nas ruas do Benfica ou em algum estranho rincão da América Latina

onde se sucedem golpes de estado e florescem tiranos e ditadores

e onde o silêncio parece ser uma glória inalcançável

e o poema se esconde entre nuvens de agrotóxicos

e as flores insistem em florescer e iluminar o deserto e acender as brasas do amanhã

e dizer não não não não não infinitas vezes

e escrever poemas e mais poemas e mais poemas e mais poemas

sonhando com amigos que estão agora no Crato ou na Cidade do México ou

em alguma ilha perdida do Pacífico ou em São Bernardo das Éguas Russas

ou nas assépticas ruas da triste e entediante cidade de São Paulo

ou nos puteiros da heroica e insana cidade de Cachoeira

enquanto a corrupção o narcotráfico e a imundície do coração sujo dos homens sujos

vai corroendo nossa esperança e nossa vontade de trepar 

e nossa necessidade de escrever cem mil poemas 

para todos os arcaicos demônios que nos guiaram até aqui e enquanto dançamos

acendemos velas e mais velas e mais velas que vão formando arabescos intermináveis

e incompreensíveis e vão povoando o mundo de uma beleza rara e invencível

que desafia a morte e o deserto onde a morte nunca existiu

e os meus amigos vão aparecendo e desaparecendo como as ondas de vaga-lumes

que cruzam as florestas em direção a algum lugar onde nunca estivemos

e onde acreditamos que devam estar germinando as sementes do amor e do tesão e da gula

e da febre e dos milhares de poemas que esperam a hora de vir à flor da pele 

meus amigos cantam um canto estranho onde a morte não existe

e tudo está vivo e tudo se entrelaça com tudo

como cipós raízes e todas as formas de vida que se juntam nos corais e todas as cores

que existem nas pinturas e nos sonhos e nos corpos dos jovens que vivem como

se não houvesse amanhã nem ontem nem agora nem nada além

do além onde estão imersos e onde se beijam se abraçam se lambuzam de mel e se tocam

e produzem sons e uivam e gemem e soletram rosas e girassóis e entram em transe

e começam a entoar cânticos antigos em línguas que todos acreditavam mortas

e essas canções dizem exatamente que a morte não existe 

e que os desertos são mais que desertos e que os poemas são mais que poemas 

e que a vida é mais que a vida e que os sonhos são muito mais que simples sonhos 

e os meus amigos vão se despedindo e desaparecendo e

vão outra vez me abandonando e apenas o silêncio e a luz do silêncio e o escuro do silêncio

e a grande noite do silêncio vai se expandindo em meu tórax e vai se transformando numa

capa de chuva ou num caracol imenso onde meu corpo vai se recolhendo

e vai definhando e vai murchando e minhas mãos agora aprisionadas

escrevem em suas paredes internas mais um poema 

que é mais um grito que é mais que um grito

que é uma maneira de produzir desertos onde não existem mortes

onde dançam meus amigos com animais estranhos e coloridos

onde transam meus amigos e se lambuzam de mel e de fezes e fumam ervas de esperança

enquanto a guerra a miséria o ódio vai destruindo a terra

e os homens de corações sujos vão corrompendo o milagre da vida

e os jornais vão espalhando mentiras e mais mentiras que são mais que mentiras

a morte não existe a morte não existe a morte não existe a morte

é mais que a morte é seu aquém é seu além é seu entorno é sua promessa é

a flecha que dela escapa em direção ao rosto e à máscara

uma puta passa na madrugada e meus amigos brincam com ela 

e ela brinca com meus amigos e nós brincamos como

crianças que sabem que tudo é deserto 

e que no deserto a morte não existe apesar de sabermos também

que estamos todos mortos e que a vida é um poema

nada mais nada menos que um poema 

que escrevemos nas úmidas paredes do caracol

onde fomos aprisionados 

antes que pudéssemos decidir uma vez mais regressar aos braços do fogo 

onde estão reunidos os meus amigos e suas capas de chuva e suas pequenas alegrias 

e suas insensatas maneiras de dizer de pensar de sentir e de ser o que são 

e o que nunca foram nem nunca poderão ser

meus amigos estão todos aqui reunidos neste lugar onde a morte nunca existirá outra vez

estão famintos e sedentos e brincam e dançam com animais que nunca existiram


nuno g.

Lima, 11 de outubro de 2025.


sábado, 4 de outubro de 2025

pedagogia

como ensinar aos filhos que há sempre um abismo entre o que queremos e o que é

    como ensiná-los que os sonhos não são fuga e sim caminho árduo e tarefa

          como aprender com eles a cair uma e outra vez e ainda assim seguir subindo

              como deixar que eles nos mostrem que o tempo não é uma linha

e que progresso e evolução são meros preconceitos de uma época adoecida

  como seguir caminhando depois de saber que nas águas os corpos afundam

      como olhar nos olhos dos grãos de milho que ofuscam a verdade de nossas retinas

          como a coragem de abandonar o que somos para que a criança nos guie 

como ensinar que não há morte sem vida

  e que todo choro contêm mundos

como despertar e despertar e despertar quando o sono parece invencível

  como aprender com as crianças que a prosa há de passar e o desencanto é provisório

     como sobreviver à ferocidade que respira em nossa nuca

como tocar os dedos e os cabelos da alegria que vem de longe e que é vento

como dizer fogo fátuo numa língua que não traz palavras 

como dançar ciranda e entender que tudo é perversão e brincadeira

  e que não há tanta distinção assim entre a crueldade e o prazer

como guiar na guerra e reconhecer quando a trégua se faz necessária

  como não desistir quando se percebe imerso na cegueira do absoluto

como ser rio e árvore ao mesmo tempo

  e remar com as unhas até a margem inexistente

como demonstrar com gestos que o amor é um sol que se confunde com esquecimento

  como ser lua quando tudo é eclipse e eternidade

como sair de si para chegar a ser o que se é

  como viver sem recordar o nosso nome a nossa face & os afetos que nos antecedem

como lembrar que somos corpos e que em nossos corpos pulsa a aurora febril do gozo

como aprender a ser o que não se é para se chegar onde sempre estivemos

como caminhar no fio amolado da faca que une e separa a morte e o nada

como não dizer essa larva que ferve em nossos subterrâneos

  como ser poeta sem deixar de ser humano

    como ser humano quando a humanidade se converte em mão que apaga sonhos

       como não deixar de lado as ruas e as praças ainda sem sair de casa

com qual tinta se escreve na umidade íntima dos caracóis

com quais cores se desenham as escamas das serpentes

quantas crianças são necessárias para que possamos chegar às nuvens

como ensinar aos filhos que a dor é necessária

  e que é preciso saber a arte de abraçá-la

     e que é preciso entoar canções para afugentá-la

        e que é preciso conversar com fantasmas e habitar ruínas

           e que é preciso desfazer-se das roupas que não servem mais

              e que mesmo mutilados e cheios de cicatrizes

ainda temos essa língua que se desdobra em direção ao infinito

como conservar delicadezas quanto tudo é monstruosidade

  como apagar incêndios e seguir amando o fogo

como acatar os imperativos da estranha lucidez que arde nas vísceras da loucura

como reunir em um mesmo movimento os sentimentos nascidos em diáspora

  entre o que seduz e o que é seduzido existem muitos túneis

em todos eles há sempre uma criança dizendo sim

    e estendendo a mão ao tenebroso que solicita seu carinho

  entre uma e estrela e outra haverá sempre uma tempestade

e só as crianças guardam asas para atravessá-las

  Hermenegildo aqui. Escrevendo com grãos de areia e milho um livro Vermelho.


nuno g.

Lima, 04 de outubro de 2025.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

o caracol e a serpente

 

para Andrés Caicedo,


amigo, tua voz me atravessou antes da despedida do sol

                                                 antes da chegada da lua

                                                 antes que o canto das estrelas ecoasse sobre o Não-Lugar

não sei como chegastes à intimidade do Caracol

           mas quando mirei esse pequeno escuro 

           vi o semblante de tuas mãos obscuras escrevendo poemas & mais poemas

e enquanto caminhava pela avenida Cuba

           vi teus paisanos vendendo arepas y palta para guacamole

pertencemos à mesma confraria

    a dos que nascem com a morte dentro

    a dos que aqui estando nunca estiveram

tua morte coincidiu com meu nascimento

   ou seria o inverso?

1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977 1977

com respeito e com urgência amigo,

as escamas da serpente são agora as letras dos poemas que estás a escrever na intimidade

                                                                                  do caracol,

com urgência e com respeito, a morte não existe

                                                a morte não é solução

nós que nascemos com ela dentro sempre aprendemos tarde

   embora nunca seja tarde

tua voz me atravessou

tua voz

ecoando do íntimo do caracol úmido e abrangente

cada letra da belíssima carta que deixastes à tua mãe

sabendo que cartas de suicidas são um gênero literário

e se dirigem a toda humanidade


nuno g.

01 de outubro de 2025



          

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Teoria dos gatilhos

Estamos em setembro e todos estão muito preocupados com os suicidas.

É muito difícil mesmo lidar com as vozes dos suicidas.

Sempre mais fácil esconder-se atrás de uma bandeira amarela.

Os suicidas são os únicos que nunca vão pronunciar as mentiras que você deseja ouvir.

E nenhum ministério os silenciará.

Os suicidas não são um problema de saúde pública.

São a prova cabal do fracasso do projeto de civilização onde estamos mergulhados.

Toda escuta burocrática é surda às vozes dos suicidas.

Nenhuma bandeira amarela é suficiente ante o vento que sopra do absurdo.

Ninguém se suicida por temer a luz do sol.

O que temem os suicidas é esse temor ao escuro que serve de fundamento.

A uma sociedade que se enterra com suas próprias mãos.

E que oculta de si mesma sua própria sombra.

Os setembros amarelos são só mais uma tentativa imperfeita e violenta.

De tentar silenciar o que não pode ser silenciado

                              o que não quer silenciado

                              o que não deve ser silenciado

                              o que nunca foi nem nunca será silenciado

A verdade que ecoa nas vozes dos suicidas diz muito sobre a enfermidade do mundo.

Eis a razão pela qual a cultura as converte em tabu

                                                 as condena ao esquecimento

Procura esvaziá-las reduzindo-as à esfera do que é individual.

Ocultando em seu gesto tudo que transcende o biográfico.

Preservando-se da severa e agônica condenação que trazem à tona. 

A convivência com a dor que sustenta a existência coletiva é insuportável.

As vozes dos suicidas ignoram os meses e as cores.

O que elas exigem é a coragem de uma escuta autêntica e radical.


nuno g.

24 de setembro de 2025.


terça-feira, 23 de setembro de 2025

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Ayahuasca (César Calvo)

A ayahuasca não é um prazer fugidio, acaso ou aventura sem semente como para os wiracochas[1].

A ayahuasca é uma porta, mas não para fugir, e sim para entrar nestas e outras naturezas. Para percorrer as províncias da noite que não têm distância, inabarcáveis.

A luz da ayahuasca não explica, não revela mistérios.

A ayahuasca rega a terra desconhecida e essa é sua maneira de alumiar.

E quando se chama com urgência e com respeito, a ayahuasca é a lâmina de uma faca de pedra. Separa o corpo da sua alma.

Se uma alma está enferma, a separa de sua matéria dura, nega o contágio, o empala.

A ayahuasca ensina a origem e a localização do mal. E diz com quais cânticos, com quais ícaros[2] o espanta.

E se o corpo está enfermo, igual. O separa de sua alma para que não a apodreça.

Ensina também as raízes que mantêm distantes o corpo espiritual e a alma material, separados, até que a carne ressuscita no precioso coração da sua saúde.

E isso que parece ser nada, é tudo.

Existem dons, existem poderes, existem mandatos, existem raízes e sucos de raízes.

Cascas precisas para isto e aquilo.

Certos tipos de chuva que se bebem e também certas pedras.

Como e quando utilizá-los e prepara-los, isso é o que sabe a ayahuasca.

E isso transfere se assim considera, se o corpo e a alma o merecem.

Quando se sabe chamar a ayahuasca com urgência e com respeito, não tem erro, não tem milagre, nem antes nem depois da ayahuasca.

Existe o que merecemos conhecer, o que merecemos ignorar.

Tudo é merecimento.

Quando se sabe chamar a ayahuasca é fácil todo o impossível.

Porque até a cinza se converte em água quando um sedento a beija.


Fragmento do romance Las tres mitades de Ino Moxo de Cesar Calvo.


Tradução livre: nuno g.

Versão utilizada para tradução:

https://pacarina-peru.blogspot.com/2016/11/ayahuasca-cesar-calvo.html



[1] Divindade andina. Refere-se aqui ao fato de que no século XVI os quéchuas designaram assim os espanhóis e, por extensão, aos estrangeiros em geral.

[2] Cânticos sagrados amazônicos.


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Pelas mãos dos ensinamentos ofertados pelo haxixe a um filósofo alemão

   Desistir no dicionário é ausência. Larissa dorme. Assucena também. Alice já foi à escola. Dylan Ortega a aguarda com uma pergunta insistente: ¿cuál es la comida típica de Brasil? Uma chuvinha vai despertando a cidade. A Marcelo Guerra só interessa o Maracanã. Ainda não sabe, mas o futebol e a ciência são metamorfoses modernas do antigo espírito religioso. O destino mais nobre da crônica é se converter em canção. E se algum dia chega a ser executada em jardins de infâncias e funerais se realizará plenamente enquanto gênero literário. Discordo em tudo de Vargas Llosa, mas sou obrigado a reconhecer que aquela guerra era mesmo a guerra do fim do mundo. E, além disso, concedo, sem vacilação, meu perdão à ignorância de quem não consegue ver que ela se estende sobre o berço esplêndido de um presente onde tudo se move em direção ao esquecimento. Os serenazgos repetem sem saber, os movimentos das algas marinhas: vão e vêm, vêm e vão, sem saber por que, sem saber pra que, sem saber de onde, sem saber pra onde. A verdade é que aquela guerra nunca teve fim. Os olhos assustados da criança e do velho seguem olhando fixamente para o antiquado fuzil do soldado republicano. Dadá segue lavando os ossos de Corisco nas praças de nossas entediadas metrópoles. A urgência de escrever sobre a teoria da história subjacente à composição de Yo, el Supremo me persegue como o passado recente persegue nossas melancólicas e atormentadas sociedades. São tempos de decomposição e de abruptas e vertiginosas mudanças. Uma vez mais é preciso alterar tudo para que o mundo permaneça exatamente como sempre foi. O problema das formas narrativas é demasiado importante para permanecer nas mãos de especialistas. Assucena já foi à escola, esquecemos de levar a fotografia. Não sei quais sonhos povoam o sono de Larissa agora. Entre Arguedas e Cortázar desenham-se armagedom e apocalipses. Hoje, outra vez o fascismo estará sentado no banco dos réus. Seja qual for o veredito sua vitória é tão certa quanto a miséria que nos define. Restam catorze minutos antes de minha terapia. Uma lágrima escorre pela parede, sua discrição impressiona a onça que a espreita. A diferença entre vingança e justiça é ainda mais sutil quando cinco séculos pesam sobre cada mínimo gesto que se executa. Entender a história é tentar entender o que não pode ser entendido. Por essa razão é tão difícil escrever uma crônica, esse gênero escorregadio que durante décadas esteve aprisionado nas folhas de embrulhar peixes. A poesia é para amadores, por isso tinha razão Arguedas quando afirmou que o exercício da escrita não era exatamente um ofício. Ele sabia que, entre nós, ofícios são sinônimos de ganha-pão. Sigo obcecado por reescrever meu dicionário. Aprendo com Assucena enquanto ela tenta pegar pássaros e esquilos no Campo de Marte. Poetas estão sempre insistindo em alcançar o inalcançável. Por essa razão, o verbete sarjeta está na mesma página dos verbetes amor e desespero. E nenhuma importância tem o fato de que essas palavras iniciem com letras distintas. Afinal de contas, não é questão de palavras ou de letras. A semântica é demasiado importante para ficar clausurada no gélido coração dos gramáticos. Através dela nossos mortos falam com nossos filhos. Há um céu enterrado neste chão. Assim como existe um sangue que habita a letra e uma carne que respira no vácuo dos ossos. Ontem um ministro do supremo tribunal acendeu um túnel no final da luz. Quem espera nunca alcança. Cavalos galopam sobre a relva que amanhece antes de nascer. Meu rosto é exatamente o mesmo do ano em que a morte quase nos tragou: devora-me ou te decifro. De abismos não se escapa, aprende-se sua linguagem. O amor ao escuro e à insônia é uma dádiva e minha gratidão por sua existência é imensa. Sonhei outra vez com São Miguel e, muito embora nada recorde do sonho, posso narrá-lo com precisão e destreza. Havia uma montanha maior que o mundo e uma criança aos prantos aos seus pés. Havia um assassino onipresente e onisciente. Na sua espada estava escrita à mão e carvão a palavra milagre. Havia uma prisão e um desejo de conhecê-la por dentro. Havia uma luz muito escura e muito antiga. Havia um grito idêntico ao silêncio onde crescem as raízes da vida. O resto não posso dizer. Não quero dizer. Não devo dizer. Isso seria como devorar o mesmo coração duas vezes. Como apunhalar Judite pela milésima vez. Profanar o silêncio sagrado de Hermenegildo e todas as coisas que ele me ensinou sobre a forma correta de pronunciar o não. É um milagre que a linguagem tenha rasgado minha pele, me ensinado a ver e ouvir as cores e os sons de mundos que, por não mais existirem, são os únicos caminhos à encruzilhada entre a esperança e as promessas perdidas de redenção. Las comidas típicas de Brasil son feijoada y maniçoba - o que interessa no futebol é que ele nos permite seguir acreditando que Dadá não lavou à toa os ossos de Corisco. A guerra segue: dentro e fora de nós. Às vezes a história nos indica que abraçar a morte é a melhor maneira de dizer sim à vida. A lágrima segue escorrendo pela parede. Agora sim, o verde do limbo se revela: olhar para trás segue sendo a melhor maneira de ver o futuro. Os antigos que me ensinaram isso estão longe, mas suas vozes me chegam de muitas maneiras. Existe uma flecha que sabe a trajetória que conecta o ódio ao amanhã - era isso o que o sonho queria dizer quando me permitiu tocar a lama roxa e comer o chão da minha infância com as próprias mãos. Enquanto houver frio e poesia haverá crença que as coisas possam se reconciliar com seus nomes, ainda que para isso as águas turvas tenham que aceitar a insana violência acumulada em suas margens. Tempo é uma divindade que não suporta o reflexo da imagem de sua própria face: crônicas versam quase sempre sobre as formas como as árvores podem multiplicar significados. Suspeito e pressinto que entre folhas, frutos e sementes existe algo que um feiticeiro poderia nomear sorriso discreto ou lunar resignação. A cidade desperta o sorriso da chuva. Feiticeiros são seres que antecedem e desconfiam de qualquer definição. Crônica é o gênero que brinca com ossos e cinzas e que afirma o não como perigo, voracidade e revelação. Nada mais me é permitido dizer além do que já foi dito.


nuno g.

Lima, 11 de setembro de 2025.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

a arte de honrar os lugares onde nunca estivemos

         Corazón serrano na rádio da padaria: 9 bolillos de queso y un vaso de chicha morada! Ainda é domingo e haverá praia, lasanha e sexo. A voz de um rio distante me pergunta sobre as bibliotecas incendiadas. Não sei o que dizer. Teria que falar outra vez sobre o punhal atravessando o corpo de Judite, o silêncio insondável de Hermenegildo e a ausência inquietante de Adélia. As pessoas aqui traçam na face o sinal da cruz ao sair de casa, esqueceram os ensinamentos das aulas de catecismo ou preferem ignorar que esse gesto é insuficiente para afastar a luz dos demônios que as atormentam quando despertas. O rio infinito insiste em me perguntar sobre as bibliotecas incendiadas como se fosse possível revelar qualquer coisa razoável sobre o proceder de nossos ancestrais. As pessoas esqueceram que são réplicas de si mesmas e que todos temos o poder de nos desdobrarmos através do tempo e do espaço. O fogo perpetua até o indesejável. O fogo perpetua principalmente o indesejável. O fogo acende, ante nossos olhos, todos os artefatos do museu do irremediável. O que interessa antecede ao nascimento de qualquer nome, à violência que é a imposição de qualquer nome. Corazón serrano na rádio da padaria: un café pasado y una empanada de pollo! Não consigo esquecer as bombas que destruíram o Caldeirão, nem tampouco aquele homem que antes de mim veio a esse país e desapareceu sem deixar rastro. Dona Rosa, que está em algum lugar onde nunca estive, levou consigo as razões dos incêndios que transformaram em cinzas as bibliotecas de José e Antônio Gonçalves. O fogo conserva as vozes e seus tempos. O fogo tem mais artimanhas que a morte. Exílio é uma palavra muito estreita para definir a peregrinação de quem sonha com serpentes e enigmas. A arte de honrar os lugares onde nunca estivemos é semelhante à arte de honrar os lugares onde sempre estivemos. Em ambos se incendeiam bibliotecas no afã de apagar o que lhes incomoda, mas o fogo reescreve com a verve das cinzas os signos incendiados. Alice despertou de mal humor, Assucena também. Larissa sonhou com minhas tias: novenas, folhas de chá e as doenças de minha vó. A voz dos lugares onde nunca estivemos pediu a Bruno que rezasse uma Salve-Rainha. Talvez fosse dona Rosa tentando me mostrar que existe algo próximo à misericórdia no enigma que habita a poesia. Ou talvez fosse apenas a súplica de um rio, distante e infinito, exigindo mais coragem ante a demoníaca luz onde brotam as flores e as lágrimas que anunciam a chegada da primavera.


nuno g.

Lima, 07/09 de setembro de 2025. 



domingo, 7 de setembro de 2025

crônica de setembro

     A miséria apodrece a alma humana. O trabalho degrada o corpo e o espírito. É quase primavera: o frio já nos abandona e caminha em direção ao outro lado do mundo. Sonhei com uma cidade azul dentro de uma cidade vermelha construída dentro de uma garrafa verde. As livrarias continuam sobrevivendo nos bairros ricos com suas cafeterias europeias. Ontem a lua estava cheia e radiante. Hoje um gato caça um pássaro com a delicadeza que só os gatos, essas pequenas onças, possuem. As flores já surgem na cidade. Recordo dos livros de pirotecnia, do meu tataravô, que foram queimados após sua morte. Recordo dos livros sobre a maçonaria, de meu bisavô, que também foram queimados após sua morte. Será mesmo a crônica um gênero menor? Uma maneira insuficiente de dizer o indizível? Descreio. Já sinto saudade do frio que parte, mas não posso segui-lo: temos destinos distintos. Uma senhora que veste algas roxas me fala de sua infância como se fosse um céu de maio. Certas brincadeiras de Tempo são como astúcias de animais urbanos, têm mais a ver com a sobrevivência que com a necessidade de entendimento. Antes de ontem vi um filme africano maravilhoso. Nele uma mãe estapeava a filha e lhe dizia: quando eu cortar meu braço para que você não passe fome finalmente entenderá que sou sua mãe. E um outro personagem falava assim: a democracia é como macaxeira importada, apodrece rápido. Nem sempre é possível ser sutil. A fome é um fato. A fome está acesa no horizonte da humanidade. A fome é um fardo. Carpinteiro do universo e Tente outra vez são duas canções que podem nos ajudar em tempos difíceis. Hoje o sol acordou mais cedo e dentro dele vibra uma tempestade cheia de promessas e milagres. São Miguel está na terra outra vez. São Miguel está na mata. São Miguel está nas águas. O trabalho degrada o corpo e o espírito. O trabalho produz e reproduz miséria. O pássaro escapa à fome do gato. Quem tem fome mata por uma migalha. Quem não tem mata por prazer. Os indiferentes se matam sem pudor. Tudo que nos é alheio nos pertence de outra forma, eis uma maneira interessante de inventarmos um caminho. Quando tio Joãozito, esse deus asmático que me protege, morreu, ainda não sabíamos que em Tenochtitlán se come pizza com feijão: isso alteraria pouca coisa, mas certamente teria feito com que ele sentisse algum prazer ao comer pizza. Agora é tarde, ele está morto e enterrado no cemitério de Russas. As águas da Caiçara lavam seu corpo como lavaram o de minha mãe, o do meu avô, o da minha vó. Não sei onde enterraram meu tataravô e isso me causa insônia e desconforto. Meu corpo está novamente coberto com cera de carnaúba. Tio Joãozito, carteiro e mulherengo como Bukowski, morreu antes de ir a Portugal encontrar com sua filha. A crueldade da vida é um bem compartilhado com todos. No filme africano uma criança inventava cata-ventos usando livros escolares de física. Meu bisavô tentou inventar um moto perpétuo no Vale do Jaguaribe. A criança africana conseguiu, meu bisavô não. Será mesmo a crônica um gênero insignificante? Gostaria que o frio não fosse embora. Gostaria que o frio me levasse com ele. As duas coisas são impossíveis, mas são as coisas impossíveis as que movem verdadeiramente o mundo. As que deslocam o que precisa ser deslocado. Cada vez mais as tiranias prosperam e se espalham como sementes malignas pela terra. A democracia é como macaxeira importada, apodrece antes da hora. Minha mãe fez mais que a mãe do filme, cortou a própria alma para que eu sentisse sede. A vejo sorrindo na lua. Iluminando o gato que caça um pássaro nos últimos dias antes da primavera. Sonhei outra vez com o rio Apurímac. Havia montanhas de ossos em seu leito. Um dia Ogum se fez senhor do meu corpo em plena margem do Jaguaribe. Vi os ciganos dançando e bebendo à sombra da oiticica. E segui meu caminho. Sem nenhum temor e com a certeza de que atravessar infernos é muito mais interessante que morrer antes da hora. Os livros de faroeste e espiritismo da biblioteca do meu avô nunca foram queimados. A filha do tio Joãozito desapareceu na península ibérica. As águas da Caiçara não lavaram o corpo de meu pai. Talvez a crônica seja o gênero mais adequado para estampar a tristeza que resta quando nada mais tem nenhum sentido.


nuno g.

7 de setembro de 2025.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

crônica de um amanhecer

     Sidney Magal ainda faz muito sucesso no Peru. Esqueci as flores que Assucena deveria levar à miss. Muitas vezes só nos resta regressar. Flores roubadas à boca, pois somente flores roubadas possuem algum sentido ainda. Hoje o fascismo despertou no banco dos réus. Isso é bom. Isso parece bom. Soa como sopro de vento favorável. Entretanto, resta ainda o gosto amargo da pergunta: quando foi que deixamos de sonhar e passamos a simplesmente resistir ao pesadelo? Em qual momento começamos a acreditar que defender instituições burguesas deveria estar em nosso horizonte? Entre oxxos e tambos corre o Apurímac. Adentra meus sonhos trazendo os ossos de Pizarro e as águas das geleiras andinas que se desfazem como um sorvete de lúcuma exposto à crueldade do sol. As artérias abertas da história seguem correndo em direção ao mar e em seus olhos salta a pergunta: quando foi mesmo que nos tornamos tão reativos? As pessoas passeiam seus cães em Jesús María. Ensaiam algumas palavras em português que aprenderam nos porões das fábricas japonesas. Entrego as flores. Olho os esquilos. Os andes estão descongelando numa velocidade inimaginável. Todos seguimos indiferentes ao perigo que isso representa. A raposa de baixo está em silêncio. A raposa de cima também. Todas as raposas estão em silêncio profundo. A terapia pode ser um bom caminho para curar o que resta de otimismo. Alguém que eu gosto muito me fala sobre a dor e, imediatamente, eu penso: não há dor maior que a resignação. Gal na vitrola: mal secreto e outra vez a alegria de quando se mandava tudo mais ao inferno. Uma das minhas tias hoje celebra oitenta anos. Minha alma chora, vejo o rio Apurímac e nele outra vez o Jaguaribe. Seus pistoleiros, suas carnaúbas, suas várzeas de piçarra vermelha. Entrego as flores roubadas na escola. Alguém olha as estrelas e estuda mitos antigos desde a janela de um apartamento em Salvador: constatar que se está perdido é um bom início. O julgamento se inicia. Os fascistas finalmente tomam assento no banco dos réus. Não deveríamos esquecer que também entre os juízes existem fascistas e que a história é uma artéria aberta, mas também uma armadilha. Os ossos de Pizarro estão em todas as esquinas dessa cidade. Em seu céu cinzento a estrela que é, a um só tempo, sina e oráculo . As mineradoras seguem contaminando palavras e flores. Minha tia celebra oitenta anos e eu penso nessa esperança ferida que entrego a São Miguel em seu mês. Há um sol que se chama esquecimento. Há um sol que se chama abandono. Há um sol que se chama fertilidade. Há um sol para cada desejo de Tempo. Assim como há um leito de rio onde transborda leite e mel. Antes de viajar meu tio me deixou algum contentamento. Como se quisesse me recordar que anos atrás suas mãos me salvaram de algo pior. Olhar a cidade me acalma. Não gostaria de entrar em falsas polêmicas, mas não resisto. O que define a literatura, senhora, não é a inovação formal. Existe muita literatura boa que se serviu de formas poéticas estabelecidas. Mas sim, em algo a professora da USP tem bastante razão: o mercado tem determinado em muito a circulação, a produção e a recepção das poéticas de nosso tempo. Impossível não recordar aqui Françoise Perus. A segunda polêmica é ainda mais rasa: andam outra vez repetindo que antes de se suicidar ela mudou a história da poesia. Com todo respeito, não foi assim. Nem perto disso. Adélia o fez. Augusto também. Cruz e Souza ibidem. Ela não. É só um clichê mais ativando nossa reatividade poética e política. Existe um anjo vermelho. Existe um anjo azul. Não devo lhes revelar seus nomes. Em respeito ao punhal que atravessa o coração de Judite. Em reverência ao silêncio de Hermenegildo. Em memória de todos os rios e das flores que brotam em suas margens. Há uma pedra no meu coração. Ela sangra. Ela espuma. Ela vocifera. Ela ruge. É como a fera do campanário: sua voz traz ao chão a lírica da escuridão. As aves de rapina sobrevoam a catedral. Todo vento que faz justiça ao nome anuncia tempestade. O julgamento prossegue. Apenas os mortos suportam a fulgurante beleza do passado. Algum dia nossos fantasmas nos julgarão por termos abandonados cedo demais a crença no amanhã. Já escuto os tambores dos terreiros louvando a São Miguel. Seus caboclos chegam. Comem com as mãos. Dançam. Fazem algazarras. Alegram nossos corações. A eles entrego a esperança. Ferida e agonizante. Desolada e cativa. Resistindo tenazmente ao ceticismo e à desolação.  


nuno g.

Jesús María, 02 de setembro de 2025.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

antipoesia

                               para Nicanor Parra,


apesar do que conste nos atestados de óbito

todos os poetas morrem mesmo é de fome


nuno g.

22 de agosto de 2025

Regresso ao Sonho, ao Rio, à Imensidão.

    Na imagem rio a presença sorrateira da imagem veneno. As feiticeiras mãos que traduziram águas e venenos em imagens ocultas sob o travesseiro desarrumado da noite passada. Convém não entrar em águas envenenadas, mas o conveniente nunca me interessou. Apenas o necessário guarda importância. Vallejo morreu de fome em Paris e hoje carrega seu país nos ombros. Carrega o peso vivo do seu país nos ombros. Nunca irei à Paris, a menos que na companhia de Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont. Suspeito que existe mais vida em qualquer parque de Lima ou praça de La Paz que em toda Paris. Todo poeta carrega um mundo sobre os ombros. O peso do mundo e o peso do amor que são, em última instância, a mesma coisa. A voz de Carol ecoa aqui, a morte se faz sentir e nenhum temor a acompanha. Uma criança vende chocolate coreano no semáforo, estamos na América Latina e aqui todos precisam sobreviver a si mesmo todos os dias. O ancoradouro flutua entre automóveis enferrujados. Preciso entrar e fixá-lo às margens outra vez. Apesar do veneno. Apesar da advertência de Luís. Apesar da voz de Carol. Assucena vai à escola. Alice surfa nas águas geladas do pacífico. Da cozinha vem o cheiro de bife frito. As cores da esperança estão impressas na Wiphala. É preciso não esquecer que todo poema deve necessariamente ter uma intenção. Algo que organize a dispersão natural dos elementos que o constituem. Os de Vallejo tinham a intenção de sustentar o peso vivo do seu país. Esse pretende converter imagens em caminhos, instalar encruzilhadas desde onde se pode ver as coisas sob muitas perspectivas distintas, deslocar rígidos minerais que estão aqui a muito tempo. Mas o que é todo deslocamento senão uma forma sutil e delicada de aproximar-se da morte? Mas o que é todo poema senão uma maneira inútil de manter acesa a ilusão da eternidade e de cumprir a impossível tarefa de cristalizar a fugacidade de toda experiência autêntica? O rio se desloca e com ele se deslocam todos os venenos. Dentro dos sonhos existem muitos rios e venenos, todos eles fundidos em um só. Os automóveis enferrujados e esverdeados pelo lodo deslizam sobre a superfície das águas como as pessoas das cidades grandes deslizam pelas ruas num movimento sem sentido e desorientado. Não há bússola. Não há roteiro. Estamos condenados à liberdade como sussurrou algum dia aquele filósofo de Paris. Mas o que vem de Paris não me diz nada. Não faz qualquer sentido. É da ordem das coisas convenientes, ou seja, opostas às coisas realmente necessárias. A voz de Carol. A morte. A ausência de temor. O maldito furúnculo que me rouba a paz. Assucena chora. Assucena sorri. Canto contra todo vento que não anuncie tempestade. Todo fascismo contemporâneo se fundamenta na eliminação de horizontes históricos. Em evitar a experiência dos velórios e em converter todos os seres em estátuas de sal, em seres unidimensionais incapazes de suportar as águas das chuvas e seus doces venenos. Estou mais longe de mim mesmo, sigo caminhando na escuridão, traço cartografias improváveis quando deveria estar envolvido com etnografias impossíveis. Quando caminho me concentro em tudo que a distração dos transeuntes abandona ao caminho. Gosto do frio. Estou a anos sem ingerir álcool. Mas sigo fermentando, destilando e curando ressacas que não se esgotam. Gostaria de dizer que chegamos ao fim e que já pressentimos as alegrias que costumam suceder a todos os fins. Mas não creio em alegrias, nem em fins. Menos ainda em sucessão ou qualquer outra forma racional de organização das temporalidades. Somos menos e habitamos o nada. Como os personagens de Henry Miller ou as duas damas de respeito que perambulam pelo Panamá em busca de algo que não sabem precisar. Todas as definições perderam sentido. O medo, a morte, o imaginário, as igrejas de Paris. Apenas o livro de Nicanor Parra sobre a mesa. Junto com saladas e bifes fritos. O ancoradouro segue flutuando no rio. Os automóveis verdes também. Apesar do veneno só me resta entrar na água e realizar o que é realmente necessário. Uma senhora pede uma esmola, aqui não é Paris. As imagens são mais interessantes que qualquer verdade. A noite é imensa. Saio do rio, bebo o veneno, desperto do sonho e caminho lentamente em direção à imensidão.


nuno g.

Lima, 22 de agosto de 2025.  

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

diário de um ex-assecla

 


    A melhor obra de teoria da história escrita nas Américas segue sendo um romance - Yo, el supremo - e não é para nada coincidência que seja paraguaio. Todo tempo perdido é irrecuperável Proust, lástima que não pudestes ler Kerouac para absorver esta lição imprescindível. O que não nos corrompe impulsiona à salvação, embora seja tarde demais para acreditarmos que o conceito de salvação tenha qualquer validade epistemológica. A errância encaminha em direção à sabedoria, entretanto o conceito de sabedoria também encontra-se demasiado contaminado e já não guarda nenhum valor que mereça ser perpetuado. Walter Benjamin preferiu a morte à vida na fronteira, minha mãe também: lamentável, mas o tempo das lamúrias está esgotado. Cruzando a avenida Brasil se chega ao mercado de Breña: os produtos mais baratos estão sempre do outro lado, por isso as árvores nunca alcançam o que buscam e só lhes resta resignar-se à sina a que foram destinadas. Parte da miséria em que estamos imersos reside em não podemos dizer que sim existe uma estranha forma de amor que se manifesta no apreço às correntes que impedem o movimento do ser; outra parte diz respeito a que todas as migrações contemporâneas estão submetidas a uma exigência externa de sobrevivência e ocorrem sob um regime compulsório e arbitrário. A vida parece mesmo iniciar e findar no mesmo gesto de violência. Tudo realmente parece obedecer ao enigmático instinto de regresso. Ainda que, sem inocência, já tenhamos acumulado suficiente experiência para saber que todo regresso se inscreve na esfera do trágico. Nem Borges, nem Cortázar, apenas uma sensação de que não pertencemos ao mundo ao qual fomos condenados. Os materiais que exigem nosso esforço assemelham-se aos búzios da praia de Piedade. Perdemos a capacidade de leitura e as estratégias que desenvolvemos têm se revelado excessivamente precárias. Depois da guerra haverá sempre outra guerra à espreita. Só o mar apascenta um coração em fúria - e todos os corações saudáveis são necessariamente corações habitados pelas fúrias. O som das máquinas e dos operários bombardeiam o silêncio, a modernidade é execrável mas nossa incompetência não nos permite encontrar vias de acesso para além dos territórios sobre os quais ela avança como avança um mendigo sobre os restos de comida atirados no lixo. Os modismos intelectuais bem servem à economia perversa de uma academia pragmática que se alimenta vorazmente daqueles que sua voz silencia. Antes de enunciar algo que se conecte intimamente a algum futuro desejável é preciso andar em círculos, devorar algo da própria pele e beber algumas gotas do próprio sangue. Algo de teoria não deveria causar dano desde que essa seja também memória de tudo que lhe antecede. É difícil aceitar que os objetos não são objetos e que suas vozes destoam do que se deseja ouvir. São tempos de cegueira e a tendência do cego é quase sempre caminhar em direção ao abismo mais próximo. Augusto Roa Bastos é mais que um nome, é uma bússola no interior de um tempo onde toda gravidade foi dissolvida. Venho de uma terra bonita com nome de onça. Tapuias, vaqueiros e pistoleiros a trouxeram até meus braços como um noivo ébrio de romantismo e temor à solidão traz sua noiva. A deixaram aqui e partiram para o além e o esquecimento. Não há dúvidas que labirintos foi por muito tempo uma boa metáfora, mas também aprendemos que as metáforas não levam a lugar nenhum e que os labirintos tem pouca serventia quando se trata de cartografar infernos e cemitérios. Azulejos azuis é a imagem mais bonita que guardo da minha infância. Cidade pequena, cidade grande é, por muitos motivos, uma obra fascinante e premonitória. Gosto dela como os fantasmas gostam do que lhes traz a esperança de voltar à carne. Gosto dela como a lâmina da faca gosta da superfície que corta. Escapei da cegueira por um triz. Descontruir enganos é a tarefa mais árdua. Não há engano maior que os enganos que nos impõem o Estado e os silêncios da primeira infância. Deles provêm todo o terror que se descortina quando despertamos da insônia que nos aniquila a capacidade de dormir. Os operários seguem produzindo ruínas e o meio-dia parece cada vez mais distante. Amar a corda que o enforca consiste na razão de ser do enforcado. Dizer isso tornou-se extremamente perigoso agora, mas não existe pensamento onde não existe perigo. Os náufragos sabem, ainda que sua condição de náufragos não os permita regressar plenamente à arte da pirataria. O dente de Adélia seguirá latejando por toda a eternidade. Judite não conseguirá estancar sua hemorragia. Hermenegildo é escravo do seu próprio silêncio. Tudo que é irrecuperável produz tormenta e deliciosas sensações. O oposto da morte não é a vida, nem o amor. O oposto da morte é a capacidade que temos de morrermos em vida. Talvez seja isso que os suicidas se recusam a aceitar. Talvez por essa razão se neguem à vida na fronteira. Mas aqui chegamos a um campo semântico demasiado complexo onde a palavra talvez encobre muitas coisas. E as coisas que ela encobre são justamente as que determinam o caminho que seguimos, as máscaras que usamos e os modos através dos quais produzimos silêncios e reproduzimos violência. É muito difícil seguir escrevendo poesia depois de Augusto dos Anjos. Mas é preciso insistir, por alguma razão que me é tão alheia quanto a paz. Depois de tudo, nos resta ainda a imensa tarefa de fazer do mundo terra arrasada para que as gerações que nos seguirão possam ter espaço suficiente para inventar algo próximo ao que entendemos como liberdade. Espero, sinceramente, que cuidem para que esse algo não se torne tão inútil quanto as bandeiras que herdamos e que reconheçam que nenhuma herança poderia ter mais valor que o nada onde lhes tocará viver. Quem sabe, serão eles os responsáveis pela verdadeira explosão do tempo e, em cada estilhaço, encontrarão os meios adequados para superar as dores do esquecimento e os imaginários medos que, inconscientemente, os legamos como parte do nada que lhe ofertamos. Alzira sabe que não repetir-se é muito distinto a alcançar uma efetiva superação. Por isso regressou ao sertão. Por essa razão voltou a comer feijão de corda com as mãos. Ao conversar com a lua e com o rio finalmente alcançou a graça suprema de ser onça outra vez. Além!


nuno g.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

hay otras maneras de bailar III

     Sigo sonhando com venenos, rios e julgamentos. O mais antigo segue aceso e ainda me chama. Pétalas de sal e álcool destilado no caminho. Tudo é tão verde que muitas vezes cega. O sombrio me atrai por ser mais necessário que a luz - e só o necessário sobrevive. Existe uma força descomunal pulsando nos subterrâneos - apesar do terror que lhe é próprio sua existência nos mantêm despertos no labirinto. A forma é o último ao que se chega e as coisas que alcançamos ao chegar são da ordem do que realmente importa. Ou seja: do que é, por natureza e definição, imperceptível.


Lima, 18 de agosto de 2025.

sábado, 16 de agosto de 2025

hay otras maneras de bailar II

     Ainda no verão é frio o inferno, assim diziam os ameríndios antes. Abandonai toda e qualquer esperança os que cheguem a essa encruzilhada, assim dizia quem veio do outro lado do mar. A árvore do esquecimento segue no mesmo lugar: crescendo para cima e para baixo. Ao contrário do que se propagou somente os melhores alcançarão o inferno - o resto será condenado à rememoração perpétua. Os monges sabem que o mundo já foi menos opaco, embora sempre tenha sido povoado por súplicas e abismos intransponíveis. Faz tempo não converso com o Senhor do Fogo e da Justiça, mas o terror de nosso último encontro ainda ecoa aqui. Inferno e Encruzilhada: lugares onde não existe sequer a palavra condenação. Alzira apenas olha o rio, pressente a presença do veneno que traz a morte dentro. Adélia se entrega à dor de dente, como quem se entrega de corpo e alma a uma divindade que todos esqueceram. Depois do café, as árduas tarefas da vida ordinária. Depois dos sonhos, a difícil missão de habitar o cotidiano. O espanto de quem por primeira vez presenciou o milho pipocar deve guardar alguma semelhança com a tristeza da mãe que inutilmente tenta fazer aviõezinhos de papel voarem num sábado qualquer. Ou talvez não. Amar o frio é amar a si mesmo. Enfrentar-se ao mundo sem o refúgio da esperança exige uma coragem para a qual nossos dicionários não têm definição. O rio segue correndo ao som das onças. Ignorando o veneno e a morte que há séculos insistem em contaminar a pureza de suas águas.


nuno g.

Campo de Marte, 16 de agosto de 2025.

hay otras maneras de bailar

     As decisões equivocadas trazem, quando menos, a felicidade de eliminar uma dúvida. O inferno tem muitas estações, nem sempre é inverno. As coisas que deixamos para trás estarão sempre prontas a nos emboscar mais adiante. Quando menos se espera, quando quase esquecemos. Sonhei com o rio Jaguaribe outra vez, havia veneno em suas águas e um pier de ferro boiando entre automóveis. Não tenho a menor ideia do que isso pode significar na minha vida, nem na vida do rio Jaguaribe. Carol também sonhou comigo, com águas e com morte. Justo no dia de São Roque. Justo num sábado de despertencimento e alheamento. Tudo isso é como a faca atravessando o coração de Judite: algo sobre o qual não se pode falar sem ofender as divindades. Ou como o silêncio de Hermenegildo que diz coisas em línguas para as quais não existe tradução possível. Não tomar as decisões é o maior dos equívocos: corresponde a eleger permanecer na antessala do inferno mergulhado em plena hesitação. Nem sempre é inverno no inferno, sinto muito se o seu medo é maior que a tentação. Demônios arcaicos são companhias mais interessantes que a monotonia e o tédio. Assim como a poesia é mais sedutora que a história e a ficção mais astuta que a verdade factual, ainda quando aferradas aos grilhões do realismo. Tu sonhou o quê Alice? Nada. A tarde segue seu ritmo, o sábado derrete enquanto a galinha cozinha no fogão. Assucena enfia pedaços de papel no ouvido. O inferno pode ser o melhor lugar para se estar. Todas as desejáveis distâncias serão alcançadas antes que a luz da lua seja devorada pela insaciável sede do sol que não existe.


Lima, 16 de agosto de 2025.

sábado, 9 de agosto de 2025

um jazz sobre rios e onças

     Havia sangue, muito sangue, no lugar onde nasci. Tudo em volta era silêncio e não havia estrelas no céu e não havia sinais de eclipse e não havia arco-íris e o chão carregava sinais de ferrugem. Nada recorda a data exata e pouco se pode dizer dos pássaros agourentos que foram as únicas testemunhas daqueles pequenos incêndios, ruídos e estremecimentos que se produziram quando escorreguei pelo interior do corpo de minha mãe e pousei nesta terra como um escaravelho esverdeado. Os pistoleiros subiram o vale em seus cavalos. Os ciganos dançaram à sombra das oiticicas. O velho carrancudo sorriu quando quase chorei. De aí em diante tudo seria ainda pior. Assassinatos, suicídios, ditaduras, exílios e, principalmente, silêncios. Até que um dia minha língua se dobrou sobre o corpo sem esperança de Tempo e tocou novamente o sangue. Entre névoa e couraça. Entre nuvens de mentiras e copos estilhaçados. Entre abandonos e objetos encravados à pele. Apenas o sangue e os pássaros por testemunhas. Apenas o silêncio e a violência desesperada dos místicos. Apenas a palavra fervendo e os suspiros dos seres de barro. Apenas o medo, este estrangeiro que respira dentro e que ameaça com seu olhar de soslaio desmoronar as últimas ruínas. Havia sangue, muito sangue, no lugar onde nasci. O resto não devo contar - por respeito à faca que atravessa como um raio desgarrado o coração assustado de Judite.


nuno g.

Lima, 09 de agosto de 2025.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

as flores do inverno

     Deus é um bom homem - Hermenegildo estava mais velho. A biblioteca acesa em suas mãos irradiava o fogo dos tempos mortos. Não havia lugar para novos assentamentos e a estrada parecia particularmente perigosa. Do outro lado, uma suspeita crescia e todos os olhos se curvavam ante o desconhecido. Deus é o outro nome da liberdade - Hermenegildo estava mais velho e algo nele recordava vagamente Adélia. A biblioteca se estendia pelos imensos corredores da terra e as vozes do mundo regressavam sutilmente. Quase se podia ouvir outra vez os mortos. A cruz de caravaca repousava no átrio. Um cão hidrófobo passeava pela noite. Deus é recusa e negação - Hermenegildo estava irreconhecivelmente mais velho. Todos seus caminhos agora se revelavam como marcas em seu corpo. O dia foi amanhecendo. A estrada seguia particularmente perigosa. A lembrança de Adélia nos protegia de nós mesmos e abraçava fervorosamente uma solidão irrequieta e triste. As portas do calabouço não poderiam ser fechadas novamente. Apenas os pássaros por testemunha. Adeus ao frio e à todas as veredas que sua presença nos trouxe. Uma grande montanha nos separa de nós mesmos. Deus é um abismo que já não existe mais - Hermenegildo falou em língua que desconhecíamos. A fera da catedral voltou a rugir e a estrada se revelou ainda mais perigosa que de costume. Adélia moveu as mãos no ar como se escrevesse um poema. Deus é uma prolongada e furiosa dor de dente e ausências - Hermenegildo estava mais velho quando se despediu dos pássaros e cavalgou de regresso ao rio. Onças em procissão lhe seguiam. Gaviões sobrevoavam seu galope. Deus é a forma do Nada em noites de lua. Apenas a frágil luz de uma vela nos olhos dos pássaros e um fogo assustado uivando na imensidão. Deus é um poema esquecido na biblioteca abandonada - um vento fez dançar as folhas de tempo. Amanheceu. O sol derreteu a sombria alegria da noite e tudo o que nunca chegou a se realizar se dissolveu como as areias com que nossas mãos cobriram o corpo do Abikú. Adélia sussurrou algo delicado e a vertigem nos cobriu com seu manto de estrelas. Apenas os pássaros, a chama e o frio testemunharam o declínio e o ocaso da fonte de todas as promessas. Deus é um corpo onde depositamos todas as nossas capacidades de dizer não. A cruz de caravaca. O cão hidrófobo. O átrio. A fera da catedral. Rebeca ofereceu a imagem de seu seio aos olhos da multidão. Adélia sorriu. Hermenegildo nos abandonou à própria sorte e solidão. Deus é um subterfúgio, uma estrada escura e a mais sublime forma de expressarmos a severidade de nossa própria condenação.


nuno g.

Lima, 06 de agosto de 2025. 

domingo, 20 de julho de 2025

deriva

    Sem notícias da Pina, milagres ocorrem quando não esperamos. Amanhã a neve e todas as ausências juntas, como sempre. O livro do sonho despertencia a qualquer gênero e estava dividido em duas partes: desterro & exílio, único que recordo além da prateleira de azulejos azuis como o túmulo do cemitério de Bom Jesus dos Aflitos que não existe mais. De Judite o já conhecido: tarda sempre muito a permissão para dizer o nome de uma dor. Ignez sentiu certa nostalgia. Nação e Estado são coisas tão distintas que nada consegue ocultar de si mesmo a violência que as une. Pipocas e derrotas: uma onça atravessa a tarde sem pressa e com um brilho estranho nos olhos. Hermenegildo abençoou Assucena e uma pétala sorriu para Alice. O beijo não vem da boca, nem o desejo do corpo - Ignácio de Loyola Brandão. Bolaño tem muita razão: estamos todos escrevendo o mesmo livro e quase todos seremos brevemente esquecidos. O Jaguaribe cruza o vale enquanto o mundo arde. Uma jangada quase surge no horizonte - Mucuripe é cada vez mais uma memória desbotada por arranha-céus e turistas. Deus é quem decide destino, disse Alzira antes de desanuviar. Queria mesmo era pronunciar a dor, mas não posso. Resta a dança, essa mistura de tristeza e desprezo à humanidade que desaprendeu a sonhar e que teima em não me esquecer de vez. Amor é sinônimo de lágrima no dicionário que estou escrevendo. Lamento é pedra azul e caminho é, por extensão e deriva, amarelo. Cristalina está bem. Tereza também. Toda nuvem é cigana. Vulcão é por onde a terra expele as secreções da memória mais antiga. Arcaico significa aquilo que está por vir. Os fascistas causam cansaço e tédio, embora possam sim destruir qualquer alegria. Sigo querendo não estar aqui, mas me obrigo. Respiro. Rezo. Alucino. A intuição pode ser o oposto da Morte, mas também pode ser seu leito e sua amiga mais confiável. Deposito essa chuva de ossos no oratório. Assucena morde Alice. Assucena chuta Alice. Pipocas e derrotas são capazes de adiar o fim da tarde. Não falta nada para sermos completamente esquecidos. Na casa de meu pai há muitas moradas; a poesia é, sem dúvidas, a mais aprazível entre todas elas.


nuno g.

Lima, 20 de julho de 2025. 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

haiku (dois coelhos amanheceram entre as pedras do seu coração)

   para Alice & Assucena,


Daniela cruzou o frio num susto.

A única maneira de manter nossos mortos vivos é não esquecê-los. 

Amanhã, a neve.


Lima, 18 de julho de 2025.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Sonho (o caçador e os caminhos não nomeados)

Sonhei com a capa do meu pai me protegendo da chuva

Negra e vermelha como as bandeiras dos sonhos operários que não existem mais

Povoada por jaguares, gaviões e serpentes

Entre as águas doces e salgadas

Onde se escuta melhor o canto dos pássaros

E se avista a estrela do amanhecer em sua plenitude

Havia um caminho de piçarra que levava para além do nada

E de todas as gastas metáforas de um tempo ausente

Sonhei com a capa do meu pai me abrigando da chuva

Negra e vermelha como as bandeiras dos sonhos operários que não existem mais

Semeada de flores e borboletas

Entre as ruínas e a mais profunda escuridão

Onde apenas os vaga-lumes acendem alguma recordação

Sonhei que sonhava com a capa do meu pai

Negra e vermelha como a chuva de ossos

Entre o desamparo e a solidão de uma carne ferida pelo punhal do esquecimento

Onde se escuta com fina delicadeza o sopro do vento gelado das montanhas

E a brisa doce que desce dos céus à terra

Sem pressa, sem destino e sem qualquer pretensão de chegar a lugar nenhum...


nuno g.

Lima, 17 de julho de 2025.

domingo, 13 de julho de 2025

entre o Sétimo e a Serpente

    Todos dormem. Aconteceu a tanto tempo que chego a duvidar da realidade do ocorrido. Suspeito que aquela imagem na praia seja somente uma imagem produzida pelo labor incansável de algum daimon arcaico. Entretanto, ainda ouvir o som do mar traz certa tranquilidade e alguma certeza sobre a veracidade dessa memória náufraga. Algo daquilo me resguarda agora contra o pavor que me habita. Onde o medo e o perigo também o caminho. Não havia ninguém além do daimon e da serpente. E coisas muito antigas trabalhavam sobre seus corpos fundando um horizonte insuspeito. O depois revelaria muito sobre como se abrem caminhos nos corpos e nos tribunais. A paranoia, histriônica e ébria, à sombra dos coqueiros, zombava da pressa e da ânsia que dominavam a fúria do daimon em êxtase. A serpente se esgueirava entre os raios do sol como areia entre dedos ou desejo fugaz exposto ao juízo de valor do inquisidor supremo. Da água salgada passaram à água doce. A pressa do daimon e o tesão paciente da serpente. Caleidoscópio de estrelas, ressentimentos vagos, percursos oblíquos. Foi a muito tempo. Nada naquela praia os recorda. Talvez o monstro que os acompanhava, mas do monstro já nada se sabe. Há quem diga que morreu na Nicarágua ou que, para sempre, se perdeu em alguma ruína pré-hispânica da Guatemala. Seria uma boa história sobre como os corpos podem nos levar a cruzar tranquilamente as fronteiras, mas a sofreguidão do daimon não permitiu que assim fosse. Embora seu impulso feroz em direção à carne tenha encerrado a noite dos tribunais e acendido pequenos vaga-lumes nas partes íntimas da serpente. Sobre esta nada se pode dizer, apenas que segue reinando em algum lugar entre o silêncio e a ausência. Vez ou outra regressa em sonho e semeia. Em seguida, desaparece como desaparecem todas as coisas que acontecem nas noites dos carnavais. O medo e o perigo seguem pulsando. Os caminhos seguem se abrindo. Onde existe carne e ferida haverá sempre chão e luz, ainda que tudo esteja demasiado escuro e toda a realidade esteja ameaçada por uma única imagem. As coisas que eu poderia dizer estão interditadas para sempre. Apenas os arqueólogos poderão falar livremente sobre elas. Sobre as ruínas, os ossos e os pequenos sussurros soterrados nas camadas de Tempo que se acumularam desde aquele dia em Mangue Seco. Todos dormem. O frio vai vencendo a guerra inexistente. A memória pulsa e fabrica insetos de estranhíssima arquitetura. Naufragar é sinônimo de ousadia, embora aos olhos de quem julga de longe assemelhe-se a insensatez e resignação. Houve amor e fúria. Houve uma boca suicidando-se em alheia carne. Houveram outras coisas que não posso narrar. Quem sabe um dia a serpente nos brinde com sua versão. Ou o daimon encontre a forma exata de descrever sua noite, seus calabouços e o fogo que alimenta sua própria destruição.


nuno g.

Lima, 13 de julho de 2025. 

sábado, 12 de julho de 2025

dança folclórica

     Outra vez, o Sol. O que aqui neste tempo e lugar é o mais próximo do que conhecemos por milagre. As ausências nos saudaram ao caminho, inevitável. A avenida, fechada, virou chão de baile e memória. E aquela beleza que nasce das mais antigas dores se exibiu ante nossos olhos. Máscaras, lamentos, esporas, chicotes, espectadores com olhares perdidos, autoridades à sombra, cães, crianças e uma serpente colorida traçando indecifráveis arabescos no asfalto. A barca que corre no mar, corre no meu coração. Até aqui chegou aquele vento. E com ele a memória da faca atravessando o peito de Judite. E com ele a faca atravessando o peito de Alzira. E com ele a terceira faca nas mãos pacíficas de Hermenegildo. O arco-íris e uma centena de pequenos insetos ruminantes cavando túneis no ventre da terra. Fazia tempo que meus joelhos não sangravam uma oração. Tem dias que nos esperam com mais promessas que as que merecemos. Não sendo filósofo, pode dizer coisas que estavam além da compreensão. Apenas os vestígios de que esteve aqui um dia seriam suficientes, mas esses também se desfizeram quando o sol desapareceu mais uma vez no horizonte de prédios, escamas e urbanas alucinações.


nuno g.

Lima, 12 de julho de 2025  

sexta-feira, 11 de julho de 2025

subterrâneos de um arquivo

     Depois de dias, o sol. Neste lugar onde o sol é sempre um acontecimento: seja pela raridade de suas aparições, seja pela discrição com que desaparece. Quase não se notam muitas coisas quando se está dentro de algum lugar que se desconhece como foi erguido. Revelar um temor é um erro e uma fatalidade que pode mudar o rumo já incerto de todas as coisas. Paciência é o nome de uma senhora distraída que nunca mais foi vista por aqui. Nenhum lugar e todas as ausências. Os costumes obedecem a uma profana dialética que escapa ao nosso parco entendimento. Hoje, melhor não falar da fé. Nem dos seres que a acompanham. Nem das encruzilhadas onde floresce. Nem das ervas que exige. Nem dos cânticos onde ela dança. Hoje, o melhor mesmo é falar pouco ou nada. Abrir apenas as frestas das portas e das janelas. Observar. Meditar. Dobrar sobre si mesmo. Reverenciar essa inóspita presença do sol. Desfrutar da brevidade desse calor. Incensar o corpo e a casa, como se fossem os últimos oratórios. Reestabelecer algum caos onde a ordem ameaça estagnar o fluxo do rio. Sentir o sabor do sangue à boca. O amargo do beijo ao barro. Semana passada não houve sol e enquanto sobrevoávamos as folhas de eucalipto me vi abruptamente transfigurado num louva-deus. Animal de arquitetura sublime, nome gracioso e estranheza estética. A lua foi cheia ontem. Judite traz um punhal no peito. Ela me pediu nada dizer sobre isso. Em sua reverência, me ausento.


nuno g.

Campo de Marte - 11/07/25. 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Olegária, uma senhora nada obscena

para Assucena,


    A conhecemos no Campo de Marte enquanto flutuávamos sobre as folhas de eucalipto em busca de um lugar onde alimentar nossos guias. Garras afiadas e retorcidas. A ansiedade e o progresso são irmãs gêmeas e incestuosas, de sua cópula nascem a estupidez e a ruína - foi o que nos disse antes de partir. Impermeável e sisuda. A todo cansaço se segue uma longa noite - foi o que nos disse ao chegar. Ao redor o som da cidade e em seu corpo som de flauta e incêndio, aroma de flores e águas, efervescentes memórias e evanescências. Dorotéia cruzou a soleira do Campo de Marte a passos distraídos. Todos os guias necessitam ser alimentados: nossas mãos cortaram o frio e tocaram o barro do chão. Além de nós havia um helicóptero sobrevoando o vazio e o sangue. Um rio chamado pássaro e os escombros da cidadela das cicatrizes. Ludmila, de saia rodada e sem paciência. Existem guias que se alimentam de poesia. Deve ser muito triste morrer antes do dia. Dança de Esquilos entre as folhas de eucalipto. Flutuamos e esquecemos. A facilidade com que os de agora se satisfazem é sintoma da decadência de um tempo que não reconhece na lâmina das águas a própria face. Olegária, sobre o cansaço e as voltas tortuosas que alguém é capaz de realizar sobre si mesma. Nossos guias comeram, sorriram e acenaram. Hermenegildo reverenciou a Serpente e Ernesto se perdeu em seu Caminho Amarelo. Tudo passou tão rápido que quando regressamos a nós o punhal já não mais continha qualquer memória da morte. O mar nos enviou um vento úmido e a escuridão acendeu inimaginável plenitude. Nunca soubemos se era sêmen ou lágrimas o que escorria entre as linhas do vestido de cetim. Ficamos com a certeza das nódoas de maturis entrelaçadas aos cabelos. Indefectível, como uma borboleta pousada no ombro envelhecido de uma senhora para quem todos viraram as costas antes do derradeiro pôr-do-sol.


nuno g.

Campo de Marte, 09 de julho de 2025.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

caminhos do inverno

     O inverno chegou, as mãos do ferreiro voltaram a tocar o semblante da divindade. As onças cruzaram o mar em busca de Hermenegildo. Em busca de Judite, de Adélia e do Senhor de Todas as Feridas e Todos os Unguentos e Beberagens. À maneira de despedida o que se viu foi uma floresta repovoando as cidades. Automóveis paralisados. Engravatados paralisados. Transeuntes paralisados. Pássaros voltando do Icó trazendo ao bico a memória da cabeça de touro enterrada entre os alicerces coloniais da igreja de Nossa Senhora da Conceição. A piçarra avermelhou o céu e as águas do Banabuiú desfizeram as barreiras que demarcavam seu leito. Havia alguém chamado Luzia, outro alguém chamado Joaquim, outro alguém que veio a cavalo da Itaiçaba. Todos sabiam seu nome, mas não o pronunciavam. Chegou antes do sol na vila do Pacheco e antes dele partiu. O ferreiro, suas mãos, a floresta: tudo se movendo em direção ao semblante da divindade. Hermenegildo cruzou o mar em busca das onças e o que encontrou não houve maneira de transformar em palavra. A vida toda seria inverno e qualquer oração estaria aquém do desejável, embora cumprisse sempre alguma serventia. Adélia era toda abismo. Judite era caverna. E os pássaros do Icó nunca permitiram que esquecêssemos da cabeça de touro enterrada aos pés da Virgem da Conceição. Assim como não esqueço sua voz antes da plenitude do sonho sussurrando: ensina tuas Marias sobre sua morte. Nem quando depois da plenitude do sonho tornastes a sussurrar: ensina a tuas Marias a doce e delicada arte de morrer. Antes que o inverno se despeça espero já não mais sentir a incômoda dor de saber que jamais me será permitido pronunciar outra vez a chama do teu nome. 


nuno g.

Jesús María, 07/08 de julho de 2025. 

sábado, 5 de julho de 2025

aboio

 para Eliana Gonçalves,


    Envelhecer é deixar para trás toda e qualquer ilusão que tenha sobrevivido ao transcurso do tempo. Ainda estou no deserto e confio apenas em meus pés e meus joelhos para seguir a travessia. Embora meus pés estejam demasiado inflamados pelos espinhos do passado e meus joelhos sigam em permanente estado de hemorragia. A noite é longa e apenas as estrelas me acompanham. A noite é demasiado longa e os rios estão avermelhados pelo sangue derramado através dos séculos. O esquecimento seria uma dádiva, mas nunca uma solução. Me demorei tempo demais em lugares onde nunca deveria ter estado e tardei excessivamente em caminhar em direção aonde sempre estive. Ouço o cântico noturno e sombrio das onças. Avisto a imensidão do paredão calcário ante meus olhos. Envelhecer é permitir que se dissolva tudo que sempre clamou por dissolução. E são muitas as coisas que nasceram para se dissolver.  Estar só seria um alívio, mas não uma solução. A túnica inconsútil me abriga e me protege de mim mesmo. Lá fora, tudo aspira a transmutar-se em algo. Ainda quando já esteja nítido que apenas o nada deveria nos guiar. Com serenidade e sabedoria. Sem desespero. Sem angústias desnecessárias. Com firmeza e resolução. A noite é imensa e nela tudo se destina a encontrar sua resolução. O resto é dedução prematura. Indevida conclusão. O inexistente me abraça. O mundo ameaça devorar meu envelhecimento precoce. Conservo a audácia de uma juventude onde cheguei a acreditar que havia algum sentido em estar aqui. Neste lugar que me aprisiona. No interior deste pesadelo infinito e labiríntico onde todas as areias são inexoravelmente movediças. Não haverá beijos neste inverno. Apenas uma paz fria e uma inesperada quietude que nenhuma similaridade guarda com as bestiais formas de consolação que me apavoram. Algo insiste em cair e nas minhas sobrancelhas se multiplicam borboletas e mariposas de inúmeras cores e cintilâncias. É tarde. Sempre foi tarde. As distâncias e os abismos se acumulam no caminho. Amar a noite. Amar o silêncio. Amar as estrelas. Escutar o cântico das onças atravessando o vento que possui nome. Isso é tudo. O resto deve, definitivamente, ficar para trás.


nuno g.

Campo de Marte, 05 de julho de 2025.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

breve história da lucidez

 para Larissa Gonçalves,


    Antes, muito antes, todas as plantas morriam. Não era descuido. Não era inércia. Não era ausência. Apenas um modo de depositar energia. Todos os meses de julho meu joelho esquerdo dói e sangra. Dói insuportavelmente. E sangra de tanto chão. Talvez agora que as plantas pararam de morrer e que pude entender algo sobre o sacrifício e a afirmação da vida sobre todas as coisas essa dor e esse sangue se realizem plenamente. Ainda que Assucena insista em enfiar pedaços de frango, restos de plástico e qualquer outra porcaria nos buracos do nariz sei que está tudo bem. Ainda que não esteja. Ainda que nunca tenha estado. Ainda que eu sinta a certeza de que nunca chegará a estar. Ainda assim é somo se soubesse que está tudo bem. E que a dor e o sangue são tão necessários quanto a escrita, a fala e o sexo. E que os sonhos são mais reais que tudo que é ordinário e comum. E que não é possível viver como antes quando se entende que não é o mesmo dizer que tudo é passageiro e transitório que sentir nas vísceras que tudo é passageiro e transitório. A fé, obscura e enigmática, oscila entre o canto do anjo vermelho e o sino assombroso da catedral. Existem coisas que nada pode alterar, essas parecem ser realmente as que importam. Quando se percebe que apesar das aparências tudo que aconteceu um dia segue sempre acontecendo se pode lentamente permitir que asas floresçam onde antes havia apenas um casco duro e opaco como o casco das tartarugas amazônicas. As plantas pararam de morrer, faz dias que não vemos o sol. O mar gelado do Pacífico me acaricia. Atravessa a vida de Alice desde o Anáhuac até o Tawantinsuyu. Violência e barbárie escorrem aos grãos das mãos de L. Existem muitos nomes que não me são permitidos pronunciar. Existem muitas histórias que não posso narrar. Os mortos que caminham comigo me protegem da morte. Rogo a eles por mais dor e mais sangue. Rogo a eles por mais sacrifícios e entendimento. Rogo a eles que me ensinem a língua das rezas do futuro. E os vejo apontar para algum lugar subterrâneo onde já estive antes de estar aqui. Onde habitam vespas, moscas e muitos outros oráculos. As folhas de Tempo caem ao solo. O mar esbraveja. As plantas insistem em não mais morrer. Afirmar a vida sobre todas as coisas e nunca esquecer que somos menos e o mais sublime que podemos aspirar é o nada.


nuno g.

Campo de Marte, 03 de julho de 2025.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Rebeca: onde se lê fé obscura leia-se coveiro da esperança ou às mãos que semearam desertos e tempestades

para Giacomo Leopardi & Cruz e Sousa, 

que antes de mim reconheceram na face deste mundo o inferno.


       Se eu não me chamasse Nuno me chamaria Rebeca, ao menos essa parecia ser a vontade de minha mãe. Foram anos sentindo repulsa e aversão a este nome até que o aceitei. Junto com ele aceitei também algumas outras verdades oriundas do antigo testamento, como aquela que diz que, apesar de tudo, aqui o peso é constante e o fundo da vida é um poço repleto de sal e peixes tristes. Séculos se passaram desde a última vez que o sino assombroso da catedral ecoou, embora em meus sonhos seu eco seja pura e autêntica presença e comprovação fática que todo passado e futuro são meros efeitos do agora. Simples estilhaços das máscaras da submissão imersas na longa noite da resignação. Os termos de quaisquer equação sempre podem ser invertidos, assim como o movimento nada pacífico das marés ou os gestos oriundos do sonambulismo. Com razão, no início, a boca de ferro e delicados lábios poderia ter pronunciado outra origem. E o mundo, com suas águas, lama e fogo teria iniciado assim: se eu não me chamasse Rebeca me chamaria Nuno, ao menos essa parecia ser a vontade do meu pai. Junto a isto aceitei também algumas outras verdades oriundas do novo testamento, como aquela que diz que, apesar de tudo, sem essa ânsia de vômito que me acompanha, a novena e a procissão seriam ainda mais sombrias. Séculos se passaram desde que o anjo vermelho cantou seu penúltimo aboio e celebrou as onças dançarinas. Se eu não me chamasse Nuno nem Rebeca poderia, finalmente, sentir a alegria de não ter nome. Então caminharia pelas ruas à chuva sem me importar com essas flechas que os transeuntes me atiram todos os dias. Voltaria ao roxo e, desde suas entranhas, assistiria outra vez aos primórdios da criação. Quando as mãos, enrugadas e flácidas, semeavam desertos e tempestades ou quando as mãos, esquálidas e ossudas, semeavam tempestades e desertos. Calabouço talvez se adequasse a descrever o que passou, mas não. Seria inoportuno e demasiado impróprio tentar exprimir o que, por definição, é inexprimível. Depois de tudo, resta apenas o frágil registro, esculpido pelo vento às falésias, de que sabíamos que não havia nada que pudéssemos fazer para alterar o ocorrido. Sabíamos também que qualquer palavra ou esforço para pronunciar o que havíamos presenciado seria em vão. E assim, finalmente, chegamos a entender o real significado das coisas irremediáveis. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Fagundes,

     Fagundes entrou e saiu das ruínas em silêncio. Trazia consigo histórias que não podia narrar e uma vaga memória de tudo que ocorrera nos últimos anos. Havia lama em seus pés e as flores que trazia à lapela eram roxas demais para se esquecer. Quando nasceu lhe jogaram búzios na praia e desde então soube da morte de Janaína e de Ian. Quando nasceu lhe jogaram búzios na praia e desde então soube da quase morte de Rebeca e do encontro com Hermenegildo sob a árvore de Tempo. Fagundes procurou Ana entre as ruínas e apenas sua sombra se apresentou. Havia uma lua no céu e um aroma adocicado que jamais se apagaria de seu corpo. O Senhor de Todas as Dores lhe tocou as mãos com uma suavidade que não tornaria a encontrar em suas andanças pelos reinos deste mundo e, apesar da sobriedade que lhe possuía como um demônio astuto e brincalhão, sentiu-se levemente mareado e quase despencou no chão. Ana estava ali, embora Fagundes não a encontrasse. Certa calma atribuiu à presença da lua e o desamparo aninhou-se entre suas rugas como um animal de estimação quando pressente a chegança dos Arautos Esquálidos e Sem-Cores. Depois de sair das ruínas Fagundes meditou por horas a fio sobre como chegara até aquele lugar desabitado. Ouviu o som do mar e avistou barcos estranhos e semblantes de pessoas que não eram Ana. Suas vestes desfiguradas denunciavam um cansaço de mil anos e a poeira nos cílios recordavam as montanhas e as noites de sua peregrinação. Uma borboleta pousou em seu sonho e uma ave negra e cintilante cantou em louvor às suas memórias. Fagundes não podia narrar o que presenciara, algo maior que sua vontade o guiava em direção ao Nada. Haviam escadas que não levavam a lugar nenhum e nuvens que nunca tomavam formas reconhecíveis. As sutilezas atravessavam o corpo de Fagundes como navalhas insanas atravessam o frio que nas madrugadas percorre as ruas das megalópoles. Fagundes chorou e suas lágrimas sabiam à ausência de Ana. Quando nasceu lhe jogaram búzios na praia e desde então soube que não poderia narrar o que ocorreu quando depois de abandonar o desânimo e a inércia começou a cavar túneis e construir pontes que não levavam a nenhum lado. Abruptamente Fagundes se desfez de tudo e se permitiu descansar. Era uma quinta-feira de maio e essa foi a última recordação que Ana guardou em seu coração de espantalho. O Senhor de Todas as Dores ensinou-lhe a arte de curar com urtigas e lhe pediu que a ensinasse ao menino dos caminhos amarelos. Fagundes chorou mais uma vez. E em suas lágrimas havia algo da insanidade com que seu avô lhe mostrou o mundo pela primeira vez. Fagundes então soube que nunca existira plenamente e, após compreender a mensagem dos búzios na praia, se entregou à voracidade da lama e à ternura das flores. Seu corpo tomou a cor roxa e ainda chegou a ver uma última estrela faiscando no céu. O Senhor de Todas as Dores e um incerto rumor amanheceram antes do eclipse. Nada mais se soube do destino de Fagundes. Nem da ira que corria em suas veias. Apenas aquele olhar desenganado de quem se alimentou de fogo-fátuo e a covardia incorporada no Anjo Vermelho após a terceira queda. Apenas a espera inexata de quem antes de nascer presenciou tragédias sobre as quais não teria permissão de narrar. Há quem diga que Ana ainda o aguarda, mas Fagundes desconhece qualquer caminho que poderia lhe levar até seus braços. O Senhor de Todas as Dores sorriu quando a ave negra desapareceu no horizonte e um estrondo de prata descortinou os véus que encobriam os cavalos amordaçados. Ana não estava mais entre nós e Fagundes já havia mergulhado para sempre nas gélidas águas de sua própria solidão. Uma borboleta amarronzada pousou em seu sono e, finalmente, o Anjo Vermelho recuperou sua insônia e deixou para trás qualquer esperança e a inútil ideia de eternidade.


nuno g.

Lima, 24 de junho de 2025.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Judite ou antes que o esquecimento se torne a única realidade

     Judite devorou o próprio coração duas vezes e foi assim que encontrou a paz necessária. Foi mais ou menos assim que ela chegou no lugar onde está agora. Depois de habitar cada um dos tronos estrangeiros que não lhe pertenciam e de caminhar com os loucos que abandonaram a floresta, desceram das montanhas e povoaram essas enfermidades à céu aberto que chamamos cidades. Judite, a que abandonei quando não olhei para trás e que ainda estava à minha espera quando, cansado e exausto, regressei. Judite, a que nunca encontrou meio de aparecer em meus sonhos e a única que sabe decifrar pesadelos e dizer com precisão o alcance do carma de cada um e de todos nós. Judite, a quem todos devemos a vida e a morte e o entendimento de que a vida e a morte são uma bendição. Judite, a que sabe ler nuvens, ler vísceras, ler sofreguidões. Judite, a que recorda a gramática perdida da língua das salamandras e a semântica dos seres sem nome que algum dia habitaram este planeta. Judite, a primeira que pronunciou a palavra saudade e que ensinou a cada ser vivo o significado desta palavra. Judite, a que já foi pedra, já foi planta, já foi água e que agora é puro ar. A que devorou seu próprio coração duas vezes e assim nos redimiu da ferida de ter nascido. Em teu nome está cravado o sangue do despertencimento. Nenhum estranhamento que tenhas sobrevivido sem coração. Nenhum mistério no fato que tenhas conseguido alguma paz. A memória de cada trono onde habitastes foi mais que suficiente. Tua capacidade de prever tragédias, anunciar cataclismos e antever anátemas remonta a tempos muito anteriores a teu nascimento. E é dela que deriva teu amor, tua quietude, tua tranquilidade e todas as virtudes que os néscios tomam por debilidade e confundem com as formas inferiores da resignação. Haverá o dia em que devorarás por terceira vez teu próprio coração - e nesse dia será ainda mais fácil reconhecer em tua face os passos que nos trouxeram até aqui. E nesse dia talvez possamos descansar realmente e nos divertir brincando com as sombras que algum dia foram nosso doce tormento e a mais pura fonte de onde jorraram nossas mais infernais ilusões. Judite é a inalcançável delicadeza com que se respira depois de toda conclusão.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025. 

Alzira: grãos de areia, lucidez e pequenas tempestades

     Alzira tinha mais de cem anos e seguia imóvel, de cócoras, no canto do terreiro, absorvida pelo movimento dos grãos de areia escorrendo entre seus dedos. Alzira já teve muitos outros nomes antes de ser batizada à pia com este nome. Os grãos de areia nunca alcançavam o solo. Nunca paravam de cair. Alzira espreitava e as rugas se proliferavam ferozmente em seu rosto. Alzira seguia imóvel como na primeira vez que a encontrei. Tinha algo de estrela em seu semblante e, apesar de tudo, se pressentiam pequenas tempestades em seu íntimo e um esforço descomunal para manter a aparência de imobilidade. Alzira arrebanhara onças e gaviões por séculos antes de chegar neste lugar. Transpirava uma exímia concentração e apenas permitia que os grãos de areia seguissem escorrendo entre seus dedos. Nunca chegavam a tocar o solo. Em Alzira se percebia que houvera muita beleza antes e o melaço em seus cabelos recordava seus primeiros encontros com Rebeca e as lições amorosas que dela recebera. Não havia menor indício de distração em Alzira e apenas sua imobilidade guardava a memória de quando cavalgara com Hermenegildo pelos campos de lama e flores. O rio esverdeado riscando sua testa, as pequenas tempestades e a aparente ausência de movimento eram o mais particular em Alzira. Sua alma, diriam os teólogos que a conheceram. Mas também a isso Alzira era toda indiferença. Sua biografia se resumia aos grãos de areia que escorriam entre seus dedos sem nunca alcançar chão. Seus sonhos se resumiam a pequenas e sonoras tempestades acrílicas que seguiam-se umas às outras numa interminável procissão. Até que veio o sol, abrasador e impiedoso, como um cão que termina de escapar de um calabouço frio e escuro onde esteve aprisionado por mais de mil anos; deitou-se aos pés de Alzira e os grãos de areia foram entranhando-se em sua pelagem enquanto Alzira parecia abandonar definitivamente a máscara com que se apresentara por toda uma encarnação. Alzira, definitivamente, não distinguia o falso do verdadeiro. Nela, luz e sombra eram uma só e a mesma realidade. Aquele cão a seus pés, o aroma adocicado e frugal que atraía mosquitos das mais distantes regiões da terra e sua estranha capacidade de revelar coragens soterradas quase justificavam sua existência. Alzira nunca desejou plenamente estar aqui, mas algo superior à sua vontade converteu em necessária sua resignação. O cão se foi. Os grãos de areia seguiram caindo sem encontrar chão e as pequenas tempestades seguem sucedendo-se umas às outras como uma sucessão infinita de cachoeiras onde todos os fogos nunca cessam de arder.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

breve história do silêncio e da culpa

a meus guias, em súplica e admoestação 

    Apenas o grito atravessou a noite e minhas mãos tornaram a tremer e a soltar faíscas de fogo e solidão. Dois seres se apresentaram e apesar da parecença que guardavam entre si não eram parentes. Provinham de árvores distintas, pertenciam a tempos distintos e se moviam por trejeitos diferenciados. Os cílios eram de cores outras e as serpentes que os acompanhavam eram de signos opostos. Alguém, com extremo carinho e delicadeza, me disse: é preciso cuidar antes de seguir. Foi quando o grito se extinguiu e se escutou algo semelhante a um hino em língua intraduzível. Apesar de nada se compreender era evidente que o hino exaltava certas virtudes presentes na desconfiança e na cautela. Rebeca, onça no cio, acenou a Hermenegildo em sua velhice. A lama dos cascos do cavalo deixou um rastro que ninguém ousou seguir. Adélia, de longe e soslaio, sorriu. Era véspera de algo que não se sabia. E como toda véspera se fazia acompanhar de algo que oscilava entre a morbidez, a descrença e a fé no infinito. Uma andorinha cruzou o céu e recordamos do campanário e do anjo vermelho e do rugido das feras. Tempo foi se desdobrando ante nosso espanto e os dois seres encostaram à sombra de uma árvore chamada Espera. Era tarde demais para qualquer manifestação de felicidade ou esquecimento. Apenas o silêncio e a culpa conseguiam respirar sem ferir a memória da infância e as mais vivas recordações de quando as onças se exibiam à luz do dia e os tapuias dançavam sobre as águas. Alguém, sentou-se à pedra, pronunciou uma oração turva e barrenta antes que Hermenegildo, Adélia e Rebeca desaparecessem mais uma vez no horizonte...


Jesús María, 19 de junho de 2025.