Depois de tempos surgindo em forma de pássaro laranja, Hermenegildo regressou em sua forma de pássaro azul. Naquele silêncio entre a margem ocidental e a margem oriental do rio suas asas exuberantes desenharam figuras geométricas e esboços de seres ainda não nomeados. A delicadeza de seu voo só encontrava parentesco naquela delicadeza que conhecemos quando nos aproximamos de Arturo Bandini. Rumores e pressentimentos foram se expandindo desde os suaves movimentos de suas asas, anunciando o fim da grande noite. Apenas o silêncio. Os gatos. Os primeiros raios de sol deitando-se sobre a lâmina do rio. Apenas o silêncio, ancorado sob o leito das entranhas minerais da terra. Apenas o silêncio, onde ecoa a voz de Tempo. Apenas o silêncio, onde se pode escutar a resposta dos pássaros aos apelos irremediáveis da moça Caetana. O silêncio, apenas o silêncio. E ao longe, muito longe, os ecos do trote da montaria de Hermenegildo cruzando a serra da Esperança.
Entre o azul e o laranja havia um segundo pássaro com uma lua presa ao bico. Havia também uma árvore carregada de estrelas. Sereno é o caos após o abandono de todas as coisas que nos impulsionavam ao grito. Sereno é o grito do trovão que anuncia a tempestade. Hermenegildo, em sua fugacidade e solitude, é todas essas coisas a um só tempo. Margem oriental, margem ocidental, lua, pássaro, grito, trovão e tempestade. Hermenegildo é o caos e a serenidade. Em seus sonhos as feiticeiras são onças e as onças são feiticeiras. Havia também um terceiro pássaro, mas sobre este não possuíamos permissão para dizer nada além do fato público e notório que em seu ninho repousavam ausências, esquecimentos e todos os sonhos que se apagam de nossas memórias ao amanhecer.
nuno g.
Toróró, 20 de novembro de 2024.