para Giacomo Leopardi & Cruz e Sousa,
que antes de mim reconheceram na face deste mundo o inferno.
Se eu não me chamasse Nuno me chamaria Rebeca, ao menos essa parecia ser a vontade de minha mãe. Foram anos sentindo repulsa e aversão a este nome até que o aceitei. Junto com ele aceitei também algumas outras verdades oriundas do antigo testamento, como aquela que diz que, apesar de tudo, aqui o peso é constante e o fundo da vida é um poço repleto de sal e peixes tristes. Séculos se passaram desde a última vez que o sino assombroso da catedral ecoou, embora em meus sonhos seu eco seja pura e autêntica presença e comprovação fática que todo passado e futuro são meros efeitos do agora. Simples estilhaços das máscaras da submissão imersas na longa noite da resignação. Os termos de quaisquer equação sempre podem ser invertidos, assim como o movimento nada pacífico das marés ou os gestos oriundos do sonambulismo. Com razão, no início, a boca de ferro e delicados lábios poderia ter pronunciado outra origem. E o mundo, com suas águas, lama e fogo teria iniciado assim: se eu não me chamasse Rebeca me chamaria Nuno, ao menos essa parecia ser a vontade do meu pai. Junto a isto aceitei também algumas outras verdades oriundas do novo testamento, como aquela que diz que, apesar de tudo, sem essa ânsia de vômito que me acompanha, a novena e a procissão seriam ainda mais sombrias. Séculos se passaram desde que o anjo vermelho cantou seu penúltimo aboio e celebrou as onças dançarinas. Se eu não me chamasse Nuno nem Rebeca poderia, finalmente, sentir a alegria de não ter nome. Então caminharia pelas ruas à chuva sem me importar com essas flechas que os transeuntes me atiram todos os dias. Voltaria ao roxo e, desde suas entranhas, assistiria outra vez aos primórdios da criação. Quando as mãos, enrugadas e flácidas, semeavam desertos e tempestades ou quando as mãos, esquálidas e ossudas, semeavam tempestades e desertos. Calabouço talvez se adequasse a descrever o que passou, mas não. Seria inoportuno e demasiado impróprio tentar exprimir o que, por definição, é inexprimível. Depois de tudo, resta apenas o frágil registro, esculpido pelo vento às falésias, de que sabíamos que não havia nada que pudéssemos fazer para alterar o ocorrido. Sabíamos também que qualquer palavra ou esforço para pronunciar o que havíamos presenciado seria em vão. E assim, finalmente, chegamos a entender o real significado das coisas irremediáveis.