estamos em maio - no coração acinzentado de maio
no único mês do ano em que a boca de meu avô não esfumaçava o mundo
esperando não sei quê coisa premonitória acontecera
estamos em maio - no coração acinzentado da Virgem
no único mês em que os sonhos cinzas se tingem de cores
estamos em maio - são quatro e meia da manhã
agradeço e caminho pela cidade imensa
onde as pessoas lutam o tempo todo contra tudo
onde os carros buzinam e se atropelam contra todos
onde as marcas do avanço do capital mancham cada esquina
cada viela, cada praça, cada traço no rosto de cada transeunte
estamos em maio e já faz frio
ainda recordo que algum dia os ossos da saudade se esfarinharam
mas também recordo que são quatro e meia da manhã e os anjos já estão despertos
nessa cidade onde fui esquilo e maritaca e solidão e esperança
avisto o amanhã e as crianças que nele correm e brincam e sonham sonhos acinzentados
caminho e sonho, sonho e caminho
vejo um moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina
vejo um senhor com fortes traços andinos vendendo flores em aymara
vejo uma senhora caminhando em direção ao mercado com uma bíblia nas mãos
são quatro e meia da manhã, compro meus cigarros
e penso em toda essa guerra que aflora nos olhos de cada transeunte
uma guerra contra a condenação do trabalho perpétuo e inútil
que apenas lhes permite comer e dormir e voltar a trabalhar
e os meus sonhos cinzas voltam a caminhar comigo pelas ruas que se cruzam à neblina
ouço os ossos de minha mãe tocando o solo da calçada
ouço seus ossos se esfarinhando
olho para o céu e vejo seu corpo agora sem ossos brilhando no meio do nada
uma imensa estrela acinzentada anunciando a chegada da próxima lua cheia
vejo minhas filhas olhando o céu e o nada
pedindo a benção à sua avó e agradecendo por estarmos desfrutando dessa cidade cinza
ouço o mar se chocando contra as pedras
em minha memória sempre a presença das coisas para sempre perdidas
em minha memória o futuro das coisas reconquistadas
estamos em maio - quatro e meia da manhã, faz frio
e os anjos cinzentos insistem em caminhar comigo
e os anjos cinzentos insistem em me falar sobre minhas vidas passadas e minhas vidas futuras
e os anjos cinzentos tomam café amargo comigo e fumam cigarros
e me falam de como a ganância está tornando o mundo mais feio e sem graça
e como as pessoas estão esquecendo de agradecer o oxigênio que as mantêm vivas
e como estamos todos tão ocupados que sequer recordamos da benção que é ter um alimento
e me fala dos mercados dessa cidade, dos parques dessa cidade, das feiras dessa cidade
e de como apesar da violência da truculência e do abandono
existe uma preciosa insistência em afirmar um passado tão antigo
e de inventar um caminho até um futuro inusitado
embora o trânsito caótico e mal humorado pareça intransponível
estamos em maio - a mulher que amo ainda tem suficiente leite e razão em seu íntimo
e divide comigo sonhos acinzentados
enquanto espreme os poemas de Alcira Soust Scaffo
enquanto espreme, como se fosse um limão,
enquanto descobre que cada verso que lê agrega ainda mais violência à vastidão da história
depois de tudo parece que o capital venceu
e que todas as saídas estão realmente interditadas
mas ainda existe esse simpático senhor andino vendendo flores de maio
ainda existe este moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina
ainda existe esse anjo que me fala de reencarnação e esperança
dos barracões do Callao com suas meninas de mini-saia no inverno
das comidas ofertadas pelo mar
do amor da mulher que tem razão e leite no corpo
das minhas filhas pedindo benção à lua
dos outros poemas que ainda serão escritos por mãos que sequer chegaram
mãe, eu te agradeço por estar vivo e poder caminhar nesta cidade
mãe, eu te agradeço pelos meus sonhos acinzentados se encruzilharem
mãe, eu te agradeço por esse mar frio, rude e violento que nos abriga
mãe, eu te agradeço por estares viva e reconhecível nesta lua cinza
mãe, a morte não existe
mãe, daime força para acreditar que o mundo do dinheiro e a escravidão do trabalho
mãe, daime luz para ver além do que é passageiro e ilusório
mãe, daime amor e gratidão para recordar do que meu avô não chegou a me dizer
mãe, daime tuas mãos e caminha comigo pelas ruas dessa cidade
olha tuas netas brincando no Campo de Marte
olha tuas netas passeando na feira do castelo Rospigliosi
olha teu filho caminhando às quatro e meia da manhã em busca de cigarros e amor
olha teu filho conversando com um senhor que onde estiver estará sempre em Huancavelica
onde estive duas décadas atrás e sonhei com todas as cores do mundo dentro do cinza
águas escorrem entre meus dedos
águas sóbrias e sombrias como a garganta aberta do inimigo
ou um beijo pronunciado em língua desconhecida
seria completamente inútil e insensato esquecer que a vida é triste
assim como é estúpido se agarrar à fantasia que não podemos atravessar a
é maio - mês em que tudo me recorda a Virgem e o meu avô
é maio - mês em que a lua está mais próxima e clareia meus pensamentos
é maio - pressinto minha vó como alegoria e rumor e cuidado e carinho
a cidade amanhece cinza dando continuidade a meus sonhos cinzentos
existe muita vida girando no caleidoscópio de ressentidas estrelas
ainda tenho visões suficientes para seguir caminhando
ainda tenho curiosidade bastante para interrogar o nada e o escuro
ainda tenho o cinza e os sonhos e todas as cores que habitam os sonhos cinzentos
amo o frio, amo o cinza, amo a neblina
amo a mulher que dorme e seu corpo cheio de razão e leite
amo os ossos esfarinhados de uma saudade que nunca deixou de me pertencer
amo o sono tranquilo e pacífico de minhas filhas
faço um café - deve ser o terceiro ou quarto deste amanhecer entre sombras e fumaça
sinto que esse edifício já se deixa ficar para trás
já é memória do tempo em que chegamos nesta cidade
quando ainda corríamos atrás de documentos e de recuperar a memória
sinto que amanhã estaremos em uma casa
e os anjos, usando das artimanhas que só os anjos têm,
me falam através do porteiro dos jardins de Santa Beatriz sobre como será a vida lá
das áreas verdes e dos pássaros e das feiras e das comidas
e da alegria em minhas filhas e em cada gesto de Larissa
recordo da praia de San Miguel, recordo do santuário em que sonhei com minha própria morte
e chovem pétalas de flores sobre a cidade dos sonhos acinzentados
e chovem ossos sobre as saudades que se dissolvem
e chove sobre as poucas lágrimas que me permiti chorar
e chove sobre a mentira, sobre as pálpebras da mentira, sobre a solidão da mentira
sobre o dia em que estaremos em Huancavelica comendo batatas desidratadas ao frio
mascando folhas sagradas