sonhei com um banquete, um banho de rio e com pessoas insuportáveis
(muitas pessoas insuportáveis)
sonhei com cárceres onde eu ficava aprisionado por engano
e amaldiçoei despertar antes de saber como era minha vida de prisioneiro
sonhei com perseguições implacáveis, assassinatos se desdobrando em outros assassinatos
e com a carta do diabo, da morte e do enforcado
sonhei com todas as mentiras que me soterraram a infância
e com a sucessão de pessoas insuportáveis que se satisfaziam sendo ainda mais insuportáveis
atravessei todos esses sonhos como um fantasma atravessa uma parede de vidro
sabendo que do outro lado da redoma existe um jardim povoado de pássaros
onde fascistas não conseguem respirar
onde mentiras não florescem
onde o silêncio só se rompe quando a palavra é necessária
sonhei milhares de sonhos se transmutando em poemas
sonhei com todos os passos do longo caminho da mediunidade
sonhei com o amor e a promessa e a chuva
sobre os campos de ervas e pedras sonâmbulas que guardam a história do mundo
sonhei com as mãos da insônia insistindo em agarrar a fumaça dos cigarros
e com os poemas eróticos que nunca cheguei a escrever
sonhei com o parque rio branco, com a praia de iracema antiga
e com navios de guerra e pirataria
sonhei com ondas esverdeadas como o lodo ou a esmeralda
e despertei na primeira noite de lua cheia depois do alinhamento dos planetas
era quase-março e eu estava quase-vivo
raios de sol escorriam do meu nariz
e a esperança verde seguia passeando solitária na cozinha de minha casa
sonhei com Cruz & Sousa, Augusto dos Anjos e Álvares de Azevedo
e fiquei extático ante o fogo como se nada na vida fosse outra coisa que não matéria sonhada
sonhei com punks caminhando na estrada
e com o suave movimento de uma relva que amanhece antes mesmo de nascer
antes mesmo de nascer...
nuno g.
Toróró, 11 de fevereiro de 2025.
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