domingo, 11 de maio de 2025

a cidade dos sonhos acinzentados



estamos em maio - no coração acinzentado de maio

no único mês do ano em que a boca de meu avô não esfumaçava o mundo

esperando não sei quê coisa premonitória acontecera

estamos em maio - no coração acinzentado da Virgem

no único mês em que os sonhos cinzas se tingem de cores

estamos em maio - são quatro e meia da manhã

agradeço e caminho pela cidade imensa

onde as pessoas lutam o tempo todo contra tudo

onde os carros buzinam e se atropelam contra todos

onde as marcas do avanço do capital mancham cada esquina

      cada viela, cada praça, cada traço no rosto de cada transeunte

estamos em maio e já faz frio

ainda recordo que algum dia os ossos da saudade se esfarinharam

mas também recordo que são quatro e meia da manhã e os anjos já estão despertos

nessa cidade onde fui esquilo e maritaca e solidão e esperança

avisto o amanhã e as crianças que nele correm e brincam e sonham sonhos acinzentados

caminho e sonho, sonho e caminho

vejo um moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina

vejo um senhor com fortes traços andinos vendendo flores em aymara

vejo uma senhora caminhando em direção ao mercado com uma bíblia nas mãos

são quatro e meia da manhã, compro meus cigarros

e penso em toda essa guerra que aflora nos olhos de cada transeunte

uma guerra contra a condenação do trabalho perpétuo e inútil

que apenas lhes permite comer e dormir e voltar a trabalhar

e os meus sonhos cinzas voltam a caminhar comigo pelas ruas que se cruzam à neblina

ouço os ossos de minha mãe tocando o solo da calçada

ouço seus ossos se esfarinhando

olho para o céu e vejo seu corpo agora sem ossos brilhando no meio do nada

uma imensa estrela acinzentada anunciando a chegada da próxima lua cheia

vejo minhas filhas olhando o céu e o nada

pedindo a benção à sua avó e agradecendo por estarmos desfrutando dessa cidade cinza

ouço o mar se chocando contra as pedras

em minha memória sempre a presença das coisas para sempre perdidas

em minha memória o futuro das coisas reconquistadas

estamos em maio - quatro e meia da manhã, faz frio

e os anjos cinzentos insistem em caminhar comigo

e os anjos cinzentos insistem em me falar sobre minhas vidas passadas e minhas vidas futuras

e os anjos cinzentos tomam café amargo comigo e fumam cigarros

e me falam de como a ganância está tornando o mundo mais feio e sem graça

e como as pessoas estão esquecendo de agradecer o oxigênio que as mantêm vivas

e como estamos todos tão ocupados que sequer recordamos da benção que é ter um alimento

e me fala dos mercados dessa cidade, dos parques dessa cidade, das feiras dessa cidade

e de como apesar da violência da truculência e do abandono

existe uma preciosa insistência em afirmar um passado tão antigo

e de inventar um caminho até um futuro inusitado

embora o trânsito caótico e mal humorado pareça intransponível

estamos em maio - a mulher que amo ainda tem suficiente leite e razão em seu íntimo

e divide comigo sonhos acinzentados

enquanto espreme os poemas de Alcira Soust Scaffo

enquanto espreme, como se fosse um limão, 

      cada personagem de um mundo onde tudo é violência

enquanto descobre que cada verso que lê agrega ainda mais violência à vastidão da história

depois de tudo parece que o capital venceu

e que todas as saídas estão realmente interditadas

mas ainda existe esse simpático senhor andino vendendo flores de maio

ainda existe este moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina

ainda existe esse anjo que me fala de reencarnação e esperança

      dos barracões do Callao com suas meninas de mini-saia no inverno

      das comidas ofertadas pelo mar

      do amor da mulher que tem razão e leite no corpo

      das minhas filhas pedindo benção à lua

      dos outros poemas que ainda serão escritos por mãos que sequer chegaram 

                                                                                                               ao ninho do útero

mãe, eu te agradeço por estar vivo e poder caminhar nesta cidade

mãe, eu te agradeço pelos meus sonhos acinzentados se encruzilharem 
      
      com o cinza desta cidade

mãe, eu te agradeço por esse mar frio, rude e violento que nos abriga

mãe, eu te agradeço por estares viva e reconhecível nesta lua cinza

mãe, a morte não existe

mãe, daime força para acreditar que o mundo do dinheiro e a escravidão do trabalho 

                                                                                                                           não existem

mãe, daime luz para ver além do que é passageiro e ilusório

mãe, daime amor e gratidão para recordar do que meu avô não chegou a me dizer 

                                                                                                                           antes da morte

mãe, daime tuas mãos e caminha comigo pelas ruas dessa cidade

olha tuas netas brincando no Campo de Marte

olha tuas netas passeando na feira do castelo Rospigliosi

olha teu filho caminhando às quatro e meia da manhã em busca de cigarros e amor

olha teu filho conversando com um senhor que onde estiver estará sempre em Huancavelica

onde estive duas décadas atrás e sonhei com todas as cores do mundo dentro do cinza

águas escorrem entre meus dedos

águas sóbrias e sombrias como a garganta aberta do inimigo

ou um beijo pronunciado em língua desconhecida

seria completamente inútil e insensato esquecer que a vida é triste

assim como é estúpido se agarrar à fantasia que não podemos atravessar a 

                                                                                                encruzilhada dos sonhos cinzas

é maio - mês em que tudo me recorda a Virgem e o meu avô

é maio - mês em que a lua está mais próxima e clareia meus pensamentos

é maio - pressinto minha vó como alegoria e rumor e cuidado e carinho

a cidade amanhece cinza dando continuidade a meus sonhos cinzentos

existe muita vida girando no caleidoscópio de ressentidas estrelas

ainda tenho visões suficientes para seguir caminhando

ainda tenho curiosidade bastante para interrogar o nada e o escuro

ainda tenho o cinza e os sonhos e todas as cores que habitam os sonhos cinzentos

amo o frio, amo o cinza, amo a neblina

amo a mulher que dorme e seu corpo cheio de razão e leite

amo os ossos esfarinhados de uma saudade que nunca deixou de me pertencer

amo o sono tranquilo e pacífico de minhas filhas

faço um café - deve ser o terceiro ou quarto deste amanhecer entre sombras e fumaça

sinto que esse edifício já se deixa ficar para trás

já é memória do tempo em que chegamos nesta cidade

quando ainda corríamos atrás de documentos e de recuperar a memória 

                                                                                              do que nos trouxe até aqui

sinto que amanhã estaremos em uma casa

e os anjos, usando das artimanhas que só os anjos têm,

me falam através do porteiro dos jardins de Santa Beatriz sobre como será a vida lá

das áreas verdes e dos pássaros e das feiras e das comidas 

                                                            e de todas as cores que vivem no cinza

e da alegria em minhas filhas e em cada gesto de Larissa 

                                                            e na dureza do rosto andino que me sorri

recordo da praia de San Miguel, recordo do santuário em que sonhei com minha própria morte

e chovem pétalas de flores sobre a cidade dos sonhos acinzentados

e chovem ossos sobre as saudades que se dissolvem

e chove sobre as poucas lágrimas que me permiti chorar

e chove sobre a mentira, sobre as pálpebras da mentira, sobre a solidão da mentira

sobre o dia em que estaremos em Huancavelica comendo batatas desidratadas ao frio

mascando folhas sagradas 

                   e sonhando com divindades arcaicas que sobreviveram ao império do capital

Assucena desperta, Larissa desperta, Alice desperta

já são quase nove horas e ainda é maio

ainda estamos no mais íntimo recanto do acinzentado coração de maio...


nuno g.
Lima, 11 de maio de 2025.








Nenhum comentário:

Postar um comentário