quinta-feira, 31 de outubro de 2024

tratado de ontologia

Existe uma relação íntima entre os nomes e os destinos.

Entre o olho que olha a borra do café, os búzios, as entranhas dos animais.

E a espera ansiosa do que se entrega à leitura do mistério.

Existe uma relação íntima entre o desejo e as posições dos astros.

Não nos movemos de nós.

E sabemos todos do fio invisível de prata que nos conecta à musica dos mortos.


nuno g.
Toróró, 31/10/24

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

A fada do dente

para Maria Alice,


O primeiro caiu na casa de Olívia.

Dani guardou e me entregou.

Inaugurei assim a caixinha de fósforos.

Vieram os outros.

Dormiam embaixo do travesseiro.

De madrugada despertavam e se recolhiam à caixinha de fósforos.

Amanhecia sempre uma moeda onde antes o dente.

Até que um dia a fada veio em silêncio e levou consigo a caixinha.

Nem em sonho senti rumor ou pressentimento de sua presença.

E por vários anos senti saudades do colar com o qual pretendia substituir suas ausências.


nuno g.

Toróró, 30/10/24.


terça-feira, 29 de outubro de 2024

flores de são Miguel - breve história de uma casa

para Maria Alice,


Não recordo o dia da semana.

Descemos a colina caminhando.

Acendemos uma vela na porteira a quatro mãos.

E outras dentro da casa de tijolinhos rústicos.

Estendemos uma toalha e fizemos um piquenique.

Brincamos, conversamos e lemos algum livro.

Dormimos como anjos na casa que vimos florescer.

No outro dia não havia água para escovarmos os dentes.

Fomos à padaria e pedimos dois mixtos com suco de laranja integral.

Voltamos à casa do Almirante até que Zenildo viesse consertar a descarga.

Chamamos Lula que fez um gato e clareou os cômodos.

Descemos outra vez a colina.

Deitamos na rede e ficamos sorrindo como árvores na chuva.


nuno g.

Toróró, 30/10/24.

sábado, 26 de outubro de 2024

Artesão das Matas Sombrias

na planta dos meus pés

raízes e frutos são sinônimos exatos

assim como equívocos são ondas sonoras

ecos das distâncias que me habitam

e que me fazem gritar não

a plenos pulmões

e chorar rios sem misericórdia

na planta dos meus pés

a morte e a lucidez são apenas detalhes

e o que realmente importa

é a inocência das canções

e os passos perdidos do último poeta romântico

e a voz de deus pairando sobre as montanhas da terra

hoje é um dia que não deveria existir

e amanhã é só uma incerta probabilidade de flecha

desorientada pela fumaça dos fumantes que caminham pela orla

na planta dos meus pés

coração de pássaro perdido

cansado, cansado, cansado, cansado, cansado, cansado, cansado...


toróró, 26 de outubro de 2024.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

sobre poemas & pesadelos II

 para Larissa,


Era para ser apenas um passeio agradável e despretensioso.

Mas quase nunca as coisas chegam a ser o que imaginamos que deveriam ser.

Saímos da praia de Iracema onde não havia nada nem ninguém.

Nem o bode Ioiô, nem o poeta Mario Gomes, nem a jangada de pedra.

Caminhamos por ruas vazias até o passeio público.

Nem o baobá habitava mais aquele lugar.

Até a praça do Ferreira tudo era cenário pós-guerra.

Muito lixo acumulado, ausência de pássaros, nenhuma pessoa.

Havia uma entrada para o subterrâneo no meio da praça.

Descemos e encontramos apenas um homem imberbe fumando crack.

Seguimos até a praça do Carmo.

Montanhas de lixo e ausências acumuladas.

Acordamos no Benfica sem Airton Monte, sem seu Chaguinha, sem nada.

Só um pesadelo a mais de quem com pesadelos a muito está habituado.

A terra devastada que herdei se prolongando sobre a memória de uma cidade solar.

A terra devastada que herdei se estendendo sobre a espinha dorsal de uma cidade que 

    há muito decidiu dar de costas aos seus e olhar fixamente o mar.

A terra devastada sobre uma cidade devastada por arranha-céus sem sentido e sonhos de 

     aquários.

Era para ser só um passeio agradável e despretensioso.

Mas terminou sendo um pesadelo.

Sobre a fé enferrujando.

E sobre todas as coisas que não nos deixam esquecer que somos menos e habitamos o nada.


nuno g.

Toróró, 24/10/24.


 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

sobre poemas & pesadelos

para Larissa,


Existe uma relação íntima entre poemas e pesadelos.

Assim como existe uma íntima relação entre rios e sertões.

Hoje mesmo fui habitado por um pesadelo.

Nele havia uma locadora de filmes tão antiga que se assemelhava a um antiquário.

Havia também o corpo de uma mulher assassinada oculto no quintal.

Havia um filme com a imagem manchada pelo sangue que se colou à fita.

E uma vela que acendemos quando encontramos o corpo da vítima.

Existe uma relação muito íntima entre o futuro e o passado.

Assim como existe algo que aproxima o voo dos gaviões aos túneis subterrâneos.

Acender uma vela é algo muito semelhante a escrever um poema.

Nos faz dar conta do escuro que nos envolve.

Nos faz não esquecer que somos mais do que sabemos sobre nós.

nuno g.
Toróró, 23/10/24.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

deus te dê água de batismo

dona Antônia sonhou com cobra verde:

traição Ceará, traição.

Assucena comeu cuscuz, comeu churrasco, comeu feijão.


O tempo segue nublado e abafado:

trovoada em gestação, Ceará.

Hermenegildo se perdeu mais uma vez no horizonte...


nuno g.

Toróró, 22/10/24.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

fotografia de aniversário

Chamava-se Ricardo.

Aparecia todos os anos no meu aniversário.

Trazia uma máquina fotográfica e um sorriso desses que mostram os dentes.

Eu esquecia que meu pai estava morto.

Eu esquecia que todos ali o detestavam.

Eu esquecia que trazíamos o mesmo nome ferrado às testas.

E me entregava à fantasia que o fotógrafo era meu pai.

Acabava a festa e ele partia.

Brinquedos, roupas, doces e salgados.

E a memória de que ao menos uma vez ao ano o espelho refletia minha imagem.


nuno g.

Toróró, 21/10/24


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

à sombra da cicatriz em flor

       O coração de Judite é azul de nascença. Bistecas à beira-mar sua distração favorita. Silêncio sua maneira de dizer coisas impossíveis de serem ditas. Quando Judite pronuncia carne, ferida, ventre, lua, semente ou sangue tudo desanuvia. Judite tem a idade da terra e seu sonho é um rio onde correm todos os rios do mundo. Às quintas Judite se faz flecha; certeira, feroz e precisa. Como quando canta. Como quando baila. Como quando se faz criança e vai limpando a sujeira que nossos passos desajeitados vão deixando para trás. Judite reverbera, ecoa, alenta paróquias crônicas e vagos desesperos. Judite ensina alheamentos, derivas e postergações necessárias. Seu nome significa sertão, seus olhos desgostam do mar e seu abraço abriga esperas.


nuno g.

Toróró, 17/10/24. 

brejo das borboletas

      Nasceu um abacaxi no terreiro. Meu avô me preparou por uma década para sua morte, me ensinou a segurar a alça do caixão, a empunhar a pá pra jogar areia sobre a madeira e a caminhar sozinho na escuridão. Era tudo o que a anja viria a me exigir anos depois: ensina sua filha a viver sem você. Amanheceu nublado. Turistas pululando na cidade. E meus olhos procurando destecer as vozes entremeadas no vazio. Vaga promessa de arco-íris pairando na atmosfera. Meu avô se foi enquanto eu dormia. Me deixou uma biblioteca que me salvou os dias de terror e precipícios, um ódio que me acompanha como cão fiel e essa serpente que me protege da covardia do mundo.


nuno g.

Toróró, 17/10/24.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

ponte sobre Banabuiú.

     Meu avô também era ponte, conectava meu corpo ao corpo da morte e meus sonhos aos sonhos dos russos do século XIX. Meu avô também era silêncio e sofreguidão, tudo nele se recusava a sedimentar. Eu era demasiado criança para entender o mundo que meu avô em mim moldava e sequer suspeitava das razões que faziam o rio se avermelhar quando suas mãos cortavam as águas. Meu avô estendeu o amarelo para que Ernesto seguisse caminhando além do paredão de pedra que é a chapada do Apodi. Tentou abrir meus olhos antes que os seus se apagassem, mas era tarde. Ele morreu e com ele se foi minha primeira infância. Depois voltou em forma de pássaro e lamento. Hoje, segue sendo ponte, entre meu canto e a impossibilidade de qualquer perdão.

nuno g.
Toróró, 16/10/24.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

brilhantes pedras finas.

   Alzira cuida - e isso diz muito, quase tudo. No quase o que a esse narrar interessa: espécie de interstício entre o nada e o nada ou pequeno e indecifrável vácuo entre o osso e o osso. Como naquele chão sem chão que habitamos quando sinceros, ou seja, quando abandonamos os livros de história e os miseráveis manuais religiosos. Os cabelos de Alzira, o olhar de Alzira, a forma como o silêncio de Alzira se move dentro de nós. Abrindo túneis, semeando serpentes, nos conduzindo do deserto às águas e das águas ao deserto. Alzira e o quase são em essência o mesmo. Assim como o que ela ensina e o que já sabemos em tudo coincidem. Alzira veste roxo, ama a lama e quando canta serena até o coração de Tempo. Alzira aqui significa soslaio ou aquela que vê o que nos impede de ver. Por isso também lhe chamam ocasionalmente de lua indecifrável ou de Senhora das coisas que aconteceram antes dos acontecimentos que nos moldam. Alzira também significa respeito, caminho estreito e pérolas resplandecentes.


nuno g.
Toróró, 14/10/24.

sábado, 12 de outubro de 2024

soleira.

    Atravancado, sem-jeito, desconexo: meio como quase brutamontes próximo aquele Hercules Quasímodo que existiu algum dia dentro da miopia de Euclides. Nome de pia: Hermenegildo. Montaria: cavalo. Idade: desconhecida. Lugar de nascença: indeterminado. Hermenegildo sempre está de passagem e nada seria como é se assim não fosse, pois são suas mãos de passarinho que descortinam as montanhas e abrem os horizontes, são suas mãos de peixes que abrem as águas e os caminhos que levam aos mundos ali existentes, são suas mãos de lâminas que fendem as rochas e nos ensinam subterrâneos. Agora mesmo desponta em sua montaria o Velho, ao mesmo tempo em que anuncia sua certeira desaparição. Hermenegildo aqui significa flecha. Também significa vento. Mas antes de tudo significa oração.


nuno g.

Toróró, 12/10/24.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

diga a eles que não me matem

É um bocado difícil crescer sabendo 
que a coisa a que podemos agarrar-nos para criar raízes está morta.

Juan Rulfo


Meu pai não se chamava Guadalupe Terreros.

Mas quando cresci e o procurei me disseram que, como ele, estava morto.

Irremediavelmente morto.

Foi como ouvir alguma música para ouvidos nada delicados.

Ainda assim meus tímpanos estouraram.

Foi como se num átimo de segundo mergulhassem meu corpo nas fossas marianas.

Ou na dorsal atlântica.

A terra devastada pelas chamas e o meu corpo carbonizado junto.

Num átimo de segundo arrastado à sepultura de águas oceânicas.


(os azulejos azuis eram os únicos peixes possíveis)

(e o único pássaro que conseguia seguir a cantar era o Assum Preto)

(cego pela ignorância e pela maldade humana)


Meu pai não se chamava Guadalupe Terreros.

Mas os homens que o mataram sabiam que trazíamos o mesmo nome de pia.


nuno g.

Toróró, 09/10/24.




sob águas profundas ou sessão sem pássaros

da terra devastada às profundezas oceânicas 

num átimo de segundo e o chão esturricado do rio seco

                                     e os cactos e o céu sem nuvens

desapareceram e em seu lugar

as fossas marianas enterradas sob quilômetros e quilômetros de águas

                                     e nenhuma fumaça traçando o caminho de volta à superfície

à terra devastada e abandonada com alegria e tristeza

                                                   com pesar e alívio

                                                   com o terror arcaico e primitivo de um mito esquecido

serpentes, serpentes e mais serpentes

trocando sucessivamente de peles e substituindo suas cores por novas cores

num movimento incessante e lisérgico

apenas o que agora em si mesmo permanecia gravitando

sem nenhum centro sem nenhum norte sem flores sem balanças sem juízos de valores

distante o suficiente de tudo o que soava detestável

mas também distante do agradável cântico dos pássaros

quase livre não fosse o pânico do sal

e a consciência fraturada ainda

como uma ferida entre o osso e o osso

ou como a saudade enferma de um deserto onde se constituíra

num átimo de segundo e estava dentro do coração do último medo imaginário

residindo na oposição de uma tarde sem sol

(todas as tardes nas fossas marianas são tardes sem sol)

e a ausência de fumaça torturando a mente

como o martelo lunar torturaria a bigorna de Apolo

quase pânico não fosse a liberdade do sal

e a voz suave da serpente

transitando à memória imberbe da terra devastada

onde um átimo de segundo antes

se encontrava

(todo gesto aqui é extensão de um silêncio que antecede)

o fio de prata e fumaça se extinguindo

e as águas evaporando todas as formas que permitiram ao si mesmo existir


nuno g.
Toróró, 09/10/24.