quarta-feira, 9 de outubro de 2024

diga a eles que não me matem

É um bocado difícil crescer sabendo 
que a coisa a que podemos agarrar-nos para criar raízes está morta.

Juan Rulfo


Meu pai não se chamava Guadalupe Terreros.

Mas quando cresci e o procurei me disseram que, como ele, estava morto.

Irremediavelmente morto.

Foi como ouvir alguma música para ouvidos nada delicados.

Ainda assim meus tímpanos estouraram.

Foi como se num átimo de segundo mergulhassem meu corpo nas fossas marianas.

Ou na dorsal atlântica.

A terra devastada pela chamas e o meu corpo carbonizado junto.

Num átimo de segundo arrastado à sepultura de águas oceânicas.


(os azulejos azuis eram os únicos peixes possíveis)

(e o único pássaro que conseguia seguir a cantar era o Assum Preto)

(cego pela ignorância e pela maldade humana)


Meu pai não se chamava Guadalupe Terreros.

Mas os homens que o mataram sabiam que trazíamos o mesmo nome de pia.


nuno g.

Toróró, 09/10/24.




sob águas profundas ou sessão sem pássaros

da terra devastada às profundezas oceânicas 

num átimo de segundo e o chão esturricado do rio seco

                                     e os cactos e o céu sem nuvens

desapareceram e em seu lugar

as fossas marianas enterradas sob quilômetros e quilômetros de águas

                                     e nenhuma fumaça traçando o caminho de volta à superfície

à terra devastada e abandonada com alegria e tristeza

                                                   com pesar e alívio

                                                   com o terror arcaico e primitivo de um mito esquecido

serpentes, serpentes e mais serpentes

trocando sucessivamente de peles e substituindo suas cores por novas cores

num movimento incessante e lisérgico

apenas o que agora em si mesmo permanecia gravitando

sem nenhum centro sem nenhum norte sem flores sem balanças sem juízos de valores

distante o suficiente de tudo o que soava detestável

mas também distante do agradável cântico dos pássaros

quase livre não fosse o pânico do sal

e a consciência fraturada ainda

como uma ferida entre o osso e o osso

ou como a saudade enferma de um deserto onde se constituíra

num átimo de segundo e estava dentro do coração do último medo imaginário

residindo na oposição de uma tarde sem sol

(todas as tardes nas fossas marianas são tardes sem sol)

e a ausência de fumaça torturando a mente

como o martelo lunar torturaria a bigorna de Apolo

quase pânico não fosse a liberdade do sal

e a voz suave da serpente

transitando à memória imberbe da terra devastada

onde um átimo de segundo antes

se encontrava

(todo gesto aqui é extensão de um silêncio que antecede)

o fio de prata e fumaça se extinguindo

e as águas evaporando todas as formas que permitiram ao si mesmo existir


nuno g.
Toróró, 09/10/24.