para Ian Gonçalves,
A charanga d'Ajuda despertou o Caquende.
Arco-íris nenhum no céu.
Os convites de domingo se desmanchando como sorvetes ante a ira do sol.
Um amigo, filho de Odé, soltou sua angústia:
Então tenho que matar meus pais!?
A frase, tal como pronunciara, soava hesitante.
Não chegava a ser uma pergunta nem uma exclamação.
Ou era as duas coisas a um só tempo.
As certezas se desmanchando ante o fascismo.
Era uma vez uma cidade onde corria um rio.
E junto com ele corriam os tapuias.
Nossos antepassados chegaram e construíram ali um forte.
Os traíram. Os perseguiram. Os mataram. Os expulsaram daquelas terras.
Um desses tapuias virou vento.
Seu nome é Aracati.
Sua presença me protegeu a infância.
Junto com ele vinham as onças.
Suçuaranas. Pardas. Castanhas.
Eram minhas melhores amigas.
Seu uivo me ninava.
Em meus sonhos regressavam memórias de um tempo anterior ao colonialismo.
Dois dias depois o arco-íris chegou.
Rastejando como uma serpente sobre o rio.
Não me deixando esquecer que todo chão que piso é cemitério.
E que a mesma lama roxa onde nasceram todas as formas de vida.
É o lugar onde nos encontraremos com a morte algum dia.
Botei as moedas que tinha no saco das ofertas da festa.
E a charanga seguiu pra despertar a Faceira.
Seus deuses, seus pescadores e seus indígenas.
Segui meu rumo e no mais improvável dos acasos.
Encontrei Dom Mario Benedetti.
Na praça do Lavrador em Cruz das Almas.
Ele me recorda que o Nacional de Montevidéu.
Está nas semifinais da sulamericana.
O Ceará não.
Às vezes a vida se decide nos pênaltis.
Como quando um dedo aperta um gatilho.
Ou quando alguém salta de um arranha-céu.
O índio que me acompanha me acaricia os cabelos.
Ouço seu ponto cantado.
Vejo seu ponto riscado.
Tateio com a língua seus lábios feridos.
Entendo assim a coexistência do doce e do amargo.
Atravesso sua mirada como um raio ou uma lança atravessam uma chaga.
Entendo assim a coexistência da tristeza e da alegria.
Recordo o vale dos jaguares tapuias de onde vim.
Recordo os fortes traços indígenas nas feições de meus sobrinhos.
Em seus corpos e trejeitos.
Nem tudo o colonialismo mata.
Nem tudo o fascismo faz perecer.
O futuro é sempre o que está soterrado.
E todo passado aguarda ainda o tempo de amanhecer.
A areia de cemitério que trago nos olhos, no tórax e nas mãos.
Vem de longe, muito longe.
Vem daquele velho túmulo de azulejos azuis que já não existe mais.
Vem das margens daquele rio que o sangue dos tapuias avermelhou as águas.
E foi sobre ela que Ogum, irmão de Odé, serviu seu feijão.
Aracati, seu filho, comeu com as mãos.
Antes que a serpente das sete cores tornasse a cruzar os céus.
Antes que a procissão dos encantados tornasse a cruzar o horizonte.
nuno g.
Toróró, 21/25 de agosto de 22.
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