sexta-feira, 27 de maio de 2022

a fogueira do Senhor da Justiça

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas farei do seu fogo minha morada.

E guardarei junto aos lírios brancos que recebi.

A memória de como a serpente me salvou das lágrimas.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas guardarei a história de Jó e seus ensinamentos. 

Sobre a vida, os escombros, os retalhos.

Junto ao beijo que nesse seio amanheceu.

Não guardarei dos golpes e punhaladas senão a memória da guerra.

E aquele fatídico hino que falava a língua das labaredas e das chamas.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Serei o último a bailar no fogo.

Serei o último a caminhar sobre as brasas.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas o guardarei comigo contra todo esquecimento.

Te entrego minhas cicatrizes e meu corpo destroçado.

Te entrego a alegria que me trouxe a serpente em seu barco.

Já tem milho verde na feira.

Já tem amendoim na feira.

Já tem lenha separada no terreiro.

Para acender teu fogo, minha morada.

Te entrego os lírios brancos e todas as minhas fraquezas.

Te entrego meu afogamento nas lágrimas do pai injustiçado.

Não pronunciarei teu nome, não sou digno.

Mas renascerei das cinzas e darei vivas à serpente.

Guardarei no coração do mar este fogo, minha morada.

E não mais permitirei que outra voz que não a do vento me alimente.

Guardarei teu nome não pronunciado.

Junto ao segundo beijo que nesse seio amanheceu.

Farei do teu fogo minha morada.

O habitarei como algum dia habitei as lágrimas.

E o alimentarei com os lírios brancos ainda úmidos de doces águas.

Guardarei a serpente e os cânticos em sua memória.

Guardarei suas cores e o ritmo em que navega seu barco.

Guardarei as nuvens onde ela fez morada.

Neste terceiro beijo que amanhece nesse seio.

Acende o fogo que ilumina o chão deste terreiro.

A sombra do semblante distorcido. 

E as plumas do gavião cicatrizado.

Guardarei a morte e sua memória sagrada.

Fonte da vida, foice de todas as iniquidades.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas farei do teu fogo minha sagrada morada.

O alimentarei com lírios brancos e doces águas.

Servirei com as mãos impuras o mel que recolhi nas encruzilhadas.

Guardarei seu nome no silêncio desta árvore.

Não sou digno. Só teu fogo saberá do que passou.

No silêncio desta árvore onde habita o Impronunciável.

Estarei sempre em guarda. Contra todo esquecimento que nos ameaça.

Serei eu mesmo a memória de todas as lágrimas.

Serei este fogo. Estes beijos amanhecidos nesse seio.

Serei eu mesmo a fogueira que será minha última morada.

Serei teu nome e nele arderá toda a ferocidade. 

E todos os vestígios de um jaguar em azul reencantado.


nuno g.

Toróró, 27 de maio de 22.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Ápeiron


Também tentei tocar com as mãos o indeterminável

E molhar com suor os círculos concêntricos das origens

E foi com os olhos, mais precisamente com os cílios

Que acariciei os círculos concêntricos dos fins

Sorri, quando seus lábios me falaram sobre desistências

& outras coisas impossíveis

Também tentei farejar a luz do esquecimento

& dizer o indizível

Abri os jornais e vi os bombardeiros russos e chineses sobrevoando os céus do oriente

Abri os jornais e vi os diplomatas chineses afirmando:

Tratamos lobos com espingardas

Fiquei imaginando como seria isso escrito em hieróglifo

Fiquei imaginando como seria isso escrito em ideograma

Fiquei imaginando como seria o mundo se não temêssemos a morte

Ouvi o som do escuro e separei a maisena, a vaselina, o suco de limão

Para preparar a massa de biscuit e modelar outra vez o infinito

Abri outra vez os jornais e vi os militares detalhando seus planos para os próximos anos

Orei a Anaximandro e em silêncio bebi o chá que me serviram as montanhas

Talvez essas nuvens guardem as formas da escrita 

Capazes de representar os círculos concêntricos do indeterminável

Orei a Anaximandro, repousei a cabeça na pedra delicada

E sonhei com a linguagem do infinito


nuno g.

25 de maio de 22.


domingo, 22 de maio de 2022

a menina que sonhava com terreiros

 para Gabriela Gonçalves & Larissa Gonçalves,


Eles somos nós

De uma maneira que a linguagem não alcança

Nenhuma linguagem

Nem a do corpo

Nem a da fala

Menos ainda a do pensamento

Açucena é um nome bonito

Cheira bem, soa bem, reverbera

Nós somos eles

De uma maneira que não alcançamos entender

Nem com nenhuma linguagem

Nem quando nos esvaziamos

Mas nunca estivemos realmente vazios

Estamos sempre entre uma ficção e outra

Mas quando sonhamos

Já não somos os mesmos

Já somos eles

E eles são o que somos

O vento chega, refresca e parte

O vento sempre volta ao mesmo lugar onde nasceu


nuno g.

Mata de São João, maio, 2022.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

A sepultura da cobra e o salto da rã

 para Marialice,


Uma concha cor de esmeralda, uma pata de siri, uma estrela do mar

Crustáceos voadores, peixes com patas à luz da lama

Suave água amarelada - espelho da terra

As mãos de Ignez, as mãos de Alice

O sorriso de um peixe com patas e sombrero

Deixando cócegas para trás

Os olhos da cobra desenterrados

Para que ela veja o salto da rã

E o azul do infinito se derramando sobre o céu amarelo

Sob o olhar da Senhora de Roxo

E do dono do destino de todas as almas

Caminho não se esquece, sonho se semeia

Hoje nasceu uma nova árvore na antiga praia

Sob as bênçãos do pintor fugitivo de asas alaranjadas

E as graças do caranguejo perfumado de patas lilases

Caminho não se esquece, sonho floresce

E se colhe - como lírios selvagens entre os bambuzais

E os magníficos corais do Além.


A lua cheia iluminou a aldeia

E as pedras da sepultura da serpente

A lua cheia iluminou o mar que sempre esteve aqui

Acendeu os búzios de nossos contra-eguns

E o silêncio prateado nas folhas da árvore sem-nome

A lua cheia iluminou a aldeia

E os magníficos corais do Além.


nuno g.

Montecristo, 15 de maio de 2022. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Teologia do Vento.

 O fogo é a lucidez, a parafina é o samsara.

Lama Padma Samten


Vinte e três caminhos movediços.

Uma serpente morta na estrada.

O sono, a lei, a melancolia.

Outra vez e sempre a rã saltitando na lâmina d’água.

Vinte e três movimentos em direção à Quietude.

Hacia o que se pode ver desde o cume das sete montanhas.

Ou ao que se pode não pensar quando silencia o monge zen.

Vinte e três espelhos ante o transcurso das horas.

Uma serpente morta na estrada.

O sono, a lei, a melancolia.

Outra vez e sempre a rã saltitando na lâmina d’água. 

Sete montanhas, um monge zen e vinte e três reverências à Quietude.

Ataraxia, a sombra nos guarda.

Nos bendiz, nos reza.

A sombra é desdobrável e assemelha-se a uma onça que ignora o amanhã.


nuno g.

Toróró, 12 de maio de 22.


segunda-feira, 9 de maio de 2022

O castelo da Rainha.


Tudo que não invento é falso.

Manoel de Barros

Foi para lá que ela me disse que ia antes de partir.

Quando chorou não o fez pela guerra, mas pelo pressentimento da vitória.

Havia tanto mel entre os vinte e três pássaros que a noite decidiu tardar além do previsto.

Cobra coral, o silêncio dos meus joelhos sobre o sangue de vosso sagrado chão.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

Curumim soprou com fé desde o bambuzal:

Não se celebra antes, sonho bom se desfaz.

Quando chorou não o fez pela guerra, mas pela intuição do sol.

Havia tanto mel entre as serpentes que choveu.

E quando Curumim soprou a flauta os sons de Uakti despertaram.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

Havia mel, demasiado mel, entre as pipocas.

Foi para lá que ela disse que íamos antes de partirmos.

Quando chorei não o fiz pela guerra, mas pelos cânticos que anunciaram seus propósitos.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

E as bênçãos da cobra coral caíram sobre nós como as águas do dilúvio.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

Curumim brincou com as estrelas.

Curumim brincou com a lua.

Curumim se lambuzou de mel e se foi.

Quando choramos não foi pela guerra, mas pela força do vento que soprava da flauta.

Não se celebra antes, sonho bom se desfaz.

E Xangô, finalmente, reinou soberano sobre todas as coisas.



nuno g.

Toróró. 09 de maio de 2022.

sábado, 7 de maio de 2022

Romantismo.

Vivemos uma ficção.

Estamos imersos num pesadelo.

O apocalipse deixou de ser um gênero literário.

Convertido em horizonte histórico avassalador.

O fascismo assumiu o comando do relógio do tempo.

O que nós buscamos se afasta de nós como o azeite da água.

A relação entre terror e realidade foi equacionada pela perversão.

Não escutamos. Não entendemos. Não vemos.

E os gritos de nossos sonhos já não nos flecham.

Quando as mãos sem cor apertaram o gatilho não puderam esquecer meu choro.

Olhei dentro do armário anos a fio o semblante dela.

E suas pernas torneadas e seu corpo esbagaçado na calçada.

Ainda assim permanecia bela e inviolável, soprou o coveiro. 

Voltamos à ficção.

Mergulhamos uma vez mais no pesadelo.

Os submarinos, as armas nucleares e a falência psíquica.

Quando as ruas foram cobertas com folhas de maniva.

Quando choveu meteoros uma última vez.

Quando a perversão tornou-se o equalizador da canção do terror e da perversão.

Paramos de sonhar. Paramos de entender. Paramos.

E ainda sem escutar ou sem ver a fantasia persecutória prosseguia.

Os disparos, o salto e a teia de mentiras.

O que buscávamos se afastando como o azeite da água.

E os mortos em silêncio trabalhando em prol da incertidumbre.

Nas cidades invisíveis da floresta negra o sol atômico e as películas de culto.

As pernas torneadas entre as peças de antiquário.

O balé de delfines no deserto do Atacama.

Os gritos de nossas flechas já não sonham.

Só a montanha impávida e colossal saberá nos mover daqui.

O tempo desintegrará todos os relógios.

E os subterrâneos da terra voltarão a sorrir.

Só os que morreram muitas vezes saberão nos guiar para fora do pesadelo.

Só os que conhecem a terra dos mortos saberão restituir ossos ao corpo da realidade.

Só os que falam a língua dos pássaros e das nuvens entoarão canções de amor e utopia.

O balé de flores sob o asfalto derrotado.

E os afetos que nos atravessam como quando entendemos 

que também os apocalipses guardam em segredo seus mais indecifráveis propósitos.


nuno g.

06 de maio de 22.


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Sonhos



Para Akira Kurosawa



Alta noite, o elefante subiu o rio na canoa.

Passarinho veio bem perto e olhou muito dentro.

Tão dentro que corpo se fez rio.

O Velho veio todo de branco.

Como os grãos de milho que seu braço arremessara em direção à pedra.

Um laço de cipó amarrou os pesadelos todos.

O Velho veio e me abraçou demoradamente.

Amanhecendo, o sol ainda despontando.

Uma lágrima escorrendo com medo dos pesadelos amarrados no laço.

Uma lágrima escorrendo com a alegria retida do abraço.

O Velho se foi. Todas as palavras ditas esquecidas.

Apenas a lembrança do abraço.

O medo dos pesadelos amarrados no laço.

E uma pequena alegria saltitando como uma rã sobre a lâmina d'água.



Nuno g.

Toróró, 05 de maio de 2022.