Não pronunciarei seu nome, não sou digno.
Mas farei do seu fogo minha morada.
E guardarei junto aos lírios brancos que recebi.
A memória de como a serpente me salvou das lágrimas.
Não pronunciarei seu nome, não sou digno.
Mas guardarei a história de Jó e seus ensinamentos.
Sobre a vida, os escombros, os retalhos.
Junto ao beijo que nesse seio amanheceu.
Não guardarei dos golpes e punhaladas senão a memória da guerra.
E aquele fatídico hino que falava a língua das labaredas e das chamas.
Não pronunciarei seu nome, não sou digno.
Serei o último a bailar no fogo.
Serei o último a caminhar sobre as brasas.
Não pronunciarei seu nome, não sou digno.
Mas o guardarei comigo contra todo esquecimento.
Te entrego minhas cicatrizes e meu corpo destroçado.
Te entrego a alegria que me trouxe a serpente em seu barco.
Já tem milho verde na feira.
Já tem amendoim na feira.
Já tem lenha separada no terreiro.
Para acender teu fogo, minha morada.
Te entrego os lírios brancos e todas as minhas fraquezas.
Te entrego meu afogamento nas lágrimas do pai injustiçado.
Não pronunciarei teu nome, não sou digno.
Mas renascerei das cinzas e darei vivas à serpente.
Guardarei no coração do mar este fogo, minha morada.
E não mais permitirei que outra voz que não a do vento me alimente.
Guardarei teu nome não pronunciado.
Junto ao segundo beijo que nesse seio amanheceu.
Farei do teu fogo minha morada.
O habitarei como algum dia habitei as lágrimas.
E o alimentarei com os lírios brancos ainda úmidos de doces águas.
Guardarei a serpente e os cânticos em sua memória.
Guardarei suas cores e o ritmo em que navega seu barco.
Guardarei as nuvens onde ela fez morada.
Neste terceiro beijo que amanhece nesse seio.
Acende o fogo que ilumina o chão deste terreiro.
A sombra do semblante distorcido.
E as plumas do gavião cicatrizado.
Guardarei a morte e sua memória sagrada.
Fonte da vida, foice de todas as iniquidades.
Não pronunciarei seu nome, não sou digno.
Mas farei do teu fogo minha sagrada morada.
O alimentarei com lírios brancos e doces águas.
Servirei com as mãos impuras o mel que recolhi nas encruzilhadas.
Guardarei seu nome no silêncio desta árvore.
Não sou digno. Só teu fogo saberá do que passou.
No silêncio desta árvore onde habita o Impronunciável.
Estarei sempre em guarda. Contra todo esquecimento que nos ameaça.
Serei eu mesmo a memória de todas as lágrimas.
Serei este fogo. Estes beijos amanhecidos nesse seio.
Serei eu mesmo a fogueira que será minha última morada.
Serei teu nome e nele arderá toda a ferocidade.
E todos os vestígios de um jaguar em azul reencantado.
nuno g.
Toróró, 27 de maio de 22.