para meu pai.
para o professor
Paulo Emílio.
No fundo falso da mala a certidão de nascimento.
Foi assim que conheceu Fleury.
Foi assim que conheceu Ustra.
Foi assim que aprendeu que sob tortura toda carne se trai.
Sobreviveu.
E dedicou o resto dos anos de sua vida à arte de ensinar
história da arte:
caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.
A certidão de nascimento era o único portigo por onde espiava
o mundo.
O resto era clandestinidade e sonhos.
Envelheceu.
E dedicou sua velhice à construção de um museu na serra da
Meruoca.
O fascismo voltou.
Fleury e Ustra foram promovidos a marechais de guerra.
A carne se arrepiou ao pressentimento da violência.
Todos aqui estão mortos, sem exceção.
Vasculho o armário.
Busco papéis e carimbos.
Ouço minha primeira vó, morta, chorando.
Ouço minha segunda vó, morta, me interrogando.
Ouço os estampidos da arma de fogo.
E olho nos olhos dos homens que mataram meu pai:
eles sabiam que ele era meu pai.
Encontro a segunda certidão de nascimento.
Sinto o amor sem mácula de meu avô.
A original se perdeu para sempre.
Caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.
Os sobrenomes são os mesmos:
ainda quando reduzidos às cinzas.
No fundo do armário nenhuma certidão de nascimento
nenhum portigo para espiar o mundo
Só a clandestinidade, os sonhos e a traição da carne ante a
intuição da violência.
Nada de papéis. Nada de carimbos.
Só o sorriso de uma criança asseando o corpo do pai com
folhas de urtiga.
Nada de choro. Nada de interrogatórios.
Só a alegria de uma criança velando o corpo do pai.
O fascismo sobreviveu.
Dediquei minha vida à arte:
caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.
Envelheci.
Quem sabe um dia suba a serra da Meruoca e enterre
no fundo falso do museu este poema.
Nuno g.
Toróró, 8 de agosto de 2021.
Ainda estamos a precisar dos fundos falsos e seguimos resistindo, com amor.
ResponderExcluirUm poema-denúncia para nossa Geração e as próximas. Bravo poeta Nuno Gonçalves. Bravíssimo.
ResponderExcluirPajé Nuno Vive!
ResponderExcluirParabéns meu irmão. O sangue pulsa e clama justiça.
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