Para marialice, contra o desencantamento do mundo, sempre.
O museu nacional virou cinzas: metáfora mais-que-perfeita do
tempo que vivemos.
Só restou lá dentro, a pedra de Bendegó.
Aquela que exigiu do império impensáveis esforços de engenharia.
Aquela que os cientistas batizaram de meteorito.
Aquela que sempre foi sagrada para os sertanejos.
Aquela que foi roubada e nunca devolvida.
O museu nacional virou cinzas: cultura e barbárie em chamas.
Em tempos de falsos profetas e mitos despossuídos de
qualquer autenticidade, resta a pedra.
Que seja devolvida agora ao sertão com um pedido de
desculpas.
Que se junte à fé dos seguidores do Conselheiro.
Que se reúna às cabeças de Lampião e seus homens sobre a
escadaria de Piranhas.
Nela pulsa um reino inteiro.
Nela toda a viagem imaginária de Dom Sebastião.
Nela a delicadeza e aspereza do amor de Corisco, o diabo
loiro, e Dadá, a sussuarana.
Que a injustiça seja desmanchada.
Que a pedra seja finalmente devolvida.
E que seja ela a deseducadora sentimental que necessitamos.
E que seja ela o amálgama mineral dos nossos rios de sangue.
E que seja ela o grito de repulsa a toda violência reunida no
nosso projeto imperial.
Nela pulsa um reino inteiro.
A distopia de uma anti-nação.
Nela as veredas todas que cortam o sertão.
Os gerais sem-fins.
Contra o rumo tóxico da civilização.
Contra os tentáculos de um colonialismo que não perece.
Contra o esquecimento e o presentismo.
O reino da pedra.
Com seus encantados.
Último mito vivo.
A pedra de Bendegó é feita de carne e de osso.
As pedras sempre foram as vísceras do sertão.
Recordo do poeta ñuu
savi me dizendo:
Foram os invasores que
nos nomearam mixtecos.
Foram os invasores que
nomearam nossos centros cerimoniais de sítios arqueológicos.
Aqui também foram os invasores que nomearam meteorito
à pedra sagrada de Bendegó que
caiu dos céus em meio ao sertão.
Foram eles os que nomearam
meteorito a esse talismã mágico.
O museu nacional virou cinzas:
Todo monumento de
cultura é um monumento de barbárie,
nos ensinou Walter Benjamin.
A cultura da memória e a memória da cultura
perderam um de seus mais opulentos monumentos:
As labaredas de fogo escreveram
em um par de horas
alguns volumes de esquecimento,
mas nem tudo foi reduzido a pó:
sobrou a pedra de Bendegó –
Esperamos que a devolvam com brevidade ao sertão de onde nunca
deveria ter saído.
Esperamos que nos devolvam o Sono e o Sonho.
O interior dessa pedra mágica é um caleidoscópio.
Nela vivem a sede dos mapuches
e todas as línguas dos índios da terra do pau-brasil.
Nela, o emparedado Cruz & Souza.
Nela arde o arcaico Sol Esquecido.
Que ela seja regressada o quanto antes
e que na próxima vez que cruzemos a 116
eu possa finalmente dizer:
eis aí marialice a
pedra que caiu dos céus
a que foi roubada
pelos Senhores do Império
a que resistiu ao
incêndio do museu nacional
aquela que tantas
vezes te contei a história
enquanto tomávamos um
suco descansando para seguir viagem
que soem os pífanos de Bendegó!
que a pedra, a poesia e o Sonho sejam ilhas de imaginação nesse
mar de barbárie.
Além.
nuno g.
cachoeira, 04 de setembro de 2018.
Parabéns, Nuno. Texto bonito e denso, como você!
ResponderExcluirum abraço
Salve, salve, poeta. Que a pedra de bendegó possa inspirar muitas histórias por esse sertão de memórias. Livres e não aprisionadas pelos senhores. Apesar da dor das cinzas, as chamas tb são libertárias, abrindo possibilidades a partir da destruição do que parecia sólido...
ResponderExcluirmatou a pau.
ResponderExcluirmelhor, a pedradas.
ResponderExcluirque chega o reino da pedra...de Bendegó!
ResponderExcluirBotou pra lascar no texto. Massa, cumpadi.
ResponderExcluirmassa, macho, um abraço!
ResponderExcluirPossacrer, Nuno... O sonho, o mito, a poesia..."Onde as almas sem corpos residem, para aqueles que procuram por uma, é dentro de uma pedra..."
ResponderExcluirÓtimo texto. Parabéns por expressar o sentimento que pulsa nos sertanejos.
ResponderExcluirFiquei maravilhada pela forma como a sua poesia explorou essa tragédia. Sua narrativa sempre me deixa meio sacudida... Rs
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