Entrou
no carro e agradeceu. Respondi, não há de
quê. Sorriu para Maria sentada na cadeirinha atrás e foi me narrando sua
história. Estudo psicologia, termino ano
que vem, meu pai mata um boi a cada seis meses para me bancar aqui. O
sotaque não negava, era pernambucano. Os modos educados não escondiam, era do
sertão. Já vai fazer um ano que não o
vejo, tem dias que a saudade me rói por dentro os ossos, me aferventa o sangue,
termino esse curso e volto, antes não que o esforço dele foi muito. Ia
falando e a cada tanto olhava e sorria para Maria. Preciso terminar logo esse curso e começar a trabalhar, antes que meu
pai dê fim no pouco que tem, esse diploma é importante demais da conta pra ele,
já eu, penso mais é em voltar, conseguir um emprego por lá e poder ganhar algum
trocado pra garantir a velhice dele, ficar perto do velho, pedir sua benção
todos os dias. Não conseguia mais segurar as lágrimas. Eu disse chore, tá tudo de boa, você é de que lugar
do Pernambuco? A resposta veio bonita: Sou
das margens de lá do rio grande, da cidade de Belém do São Francisco.
Segui: Passo sempre por lá, cruzo pelo
Ibó. Ele olhou Maria e sorriu: O
senhor também não é daqui não né? Maria abandonou o silêncio e disse: Meu pai é do Ceará, quando a gente cruza o
São Francisco já tá pertinho do Crato, da casa do tio Cláudio, lá tem o caminho
das águas, lá tem o Caldas, quando passa do são Francisco a gente só precisa
subir a chapada e atravessar a floresta e já chegou. Dessa vez quem sorriu
foi eu. Olhando para Maria ele respondeu: Não
sei por causa de quê desconfiei que vocês eram do Ceará, meu pai tem muitos
amigos de lá, do cariri e do inhamuns, quando ele era mais jovem todo ano ia pra
missa dos vaqueiros e lá fez essas amizades. Agora ele tá mais velho, anda
adoentado, eu vivo aqui preocupado, se tivesse dinheiro ia visitá-lo mais a
miúdo, mas tenho que terminar o curso, o sonho é dele, os custos aqui tão cada
dia mais altos. Desacelerei o carro e fui serpenteando a subida de capoeiruçu devagarzinho, querendo encompridar a conversa: Que curso mesmo você disse que faz? Psicologia. Você é adventista? Não.
Olha, vou te dizer uma coisa, no fim do ano nós vamos pra lá e se você quiser
pode ir com a gente de carona. Agradeço demais e quero sim! Parei o carro
no acostamento, anotei meu número de telefone e entreguei a ele. Olha que eu vou ligar mesmo. Maria
sorriu e disse: Pode ligar, a gente te
leva, deixa só chegar as férias. Encabulado perguntei: Teu pai é fazendeiro? Não senhor, antes fosse, meu pai é vaqueiro
mesmo. Agora que tá adoentado a coisa ficou difícil. E ele tá vendendo as
poucas cabeças de gado que tem pra me manter aqui. Vivo com ele desde que me
entendo por gente, ela vive só com o senhor também né? Mergulhei nas nuvens
de meus pensamentos. Pensei no romance que começara a escrever essa semana. E,
principalmente, pensava que esse menino de prosa tão ajuizada que terminara por
pegar carona com a gente nascera na mesma cidade em que nascera a Sussuarana
que eu tanto admirava. Aquela que foi a única mulher do cangaço que realmente
atirava e lutava. Fiquei lembrando de um conto que escrevi a muito tempo
chamado as exéquias de Iararana onde
eu tentava reproduzir um rito funerário indígena descrito por Darcy Ribeiro.
Quando Helena da Catingueira – cadela que me acompanhou quando vim morar aqui –
morreu, tentei reproduzir algo daquele rito. E, passado tantos anos, por
ocasião dos oitenta anos do apagamento de Lampião em Angicos, voltei a pesquisar
sobre a vida da Sussuarana – essa minha antiga paixão – e me deparei com a foto
dela lavando com álcool os ossos do diabo loiro. Agora era eu que não segurava
as lágrimas. A carona estava chegando ao fim. Ele me agradeceu com a
sinceridade dos que sabem o que é conversar com pedra e com pássaro, dos que
sabem a alegria que é banhar de rio e fazer festa pra chegança das chuvas. Só
consegui dizer: Me liga mesmo viu e no
fim do ano vamos. Ele sorriu para Maria e disse: Segue cuidando dela, deus abençoe vocês, ainda essa semana vou pedir
pro meu pai botar vocês nas orações dele, as orações dele abrem caminhos.
Nos despedimos. Trinta minutos depois chegamos à escola de Maria. Em Cruz das
Almas. E não pude deixar de pensar que toda Cruz das Almas foi um dia entroncamento
de aboiadores, encruzilhada onde os vaqueiros descansavam, se divertiam e
rezavam. Quando cheguei em casa, ao cair da noite, continuei a chafurdar no google histórias da Sussuarana e me
deparei com uma matéria antiga, da folha
de são Paulo, sobre a pesquisa de
Élise Jasmin, sensacionalisticamente intitulada: Maria Bonita era “poser”, Dadá não. Pensei: nem todo sensacionalismo é falso, nem toda verdade é flutuante.
Abandonei a pesquisa e fui montar um quebra-cabeças com Maria. Depois brincamos
de dominó e jogo da memória. Cansados, deitamos na rede e adormecemos cantando
juntos terral.
nuno g.
amigo Nuno, tio Nuno, cronista e poeta, mas acima de tudo, gente da gente.. gente boa pra danar. Esta cronica revela vc e sua tenra bondade.
ResponderExcluirParabens!!!!