segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O filho do vaqueiro


Entrou no carro e agradeceu. Respondi, não há de quê. Sorriu para Maria sentada na cadeirinha atrás e foi me narrando sua história. Estudo psicologia, termino ano que vem, meu pai mata um boi a cada seis meses para me bancar aqui. O sotaque não negava, era pernambucano. Os modos educados não escondiam, era do sertão. Já vai fazer um ano que não o vejo, tem dias que a saudade me rói por dentro os ossos, me aferventa o sangue, termino esse curso e volto, antes não que o esforço dele foi muito. Ia falando e a cada tanto olhava e sorria para Maria. Preciso terminar logo esse curso e começar a trabalhar, antes que meu pai dê fim no pouco que tem, esse diploma é importante demais da conta pra ele, já eu, penso mais é em voltar, conseguir um emprego por lá e poder ganhar algum trocado pra garantir a velhice dele, ficar perto do velho, pedir sua benção todos os dias. Não conseguia mais segurar as lágrimas. Eu disse chore, tá tudo de boa, você é de que lugar do Pernambuco? A resposta veio bonita: Sou das margens de lá do rio grande, da cidade de Belém do São Francisco. Segui: Passo sempre por lá, cruzo pelo Ibó. Ele olhou Maria e sorriu: O senhor também não é daqui não né? Maria abandonou o silêncio e disse: Meu pai é do Ceará, quando a gente cruza o São Francisco já tá pertinho do Crato, da casa do tio Cláudio, lá tem o caminho das águas, lá tem o Caldas, quando passa do são Francisco a gente só precisa subir a chapada e atravessar a floresta e já chegou. Dessa vez quem sorriu foi eu. Olhando para Maria ele respondeu: Não sei por causa de quê desconfiei que vocês eram do Ceará, meu pai tem muitos amigos de lá, do cariri e do inhamuns, quando ele era mais jovem todo ano ia pra missa dos vaqueiros e lá fez essas amizades. Agora ele tá mais velho, anda adoentado, eu vivo aqui preocupado, se tivesse dinheiro ia visitá-lo mais a miúdo, mas tenho que terminar o curso, o sonho é dele, os custos aqui tão cada dia mais altos. Desacelerei o carro e fui serpenteando a subida de capoeiruçu devagarzinho, querendo encompridar a conversa: Que curso mesmo você disse que faz? Psicologia. Você é adventista? Não. Olha, vou te dizer uma coisa, no fim do ano nós vamos pra lá e se você quiser pode ir com a gente de carona. Agradeço demais e quero sim! Parei o carro no acostamento, anotei meu número de telefone e entreguei a ele. Olha que eu vou ligar mesmo. Maria sorriu e disse: Pode ligar, a gente te leva, deixa só chegar as férias. Encabulado perguntei: Teu pai é fazendeiro? Não senhor, antes fosse, meu pai é vaqueiro mesmo. Agora que tá adoentado a coisa ficou difícil. E ele tá vendendo as poucas cabeças de gado que tem pra me manter aqui. Vivo com ele desde que me entendo por gente, ela vive só com o senhor também né? Mergulhei nas nuvens de meus pensamentos. Pensei no romance que começara a escrever essa semana. E, principalmente, pensava que esse menino de prosa tão ajuizada que terminara por pegar carona com a gente nascera na mesma cidade em que nascera a Sussuarana que eu tanto admirava. Aquela que foi a única mulher do cangaço que realmente atirava e lutava. Fiquei lembrando de um conto que escrevi a muito tempo chamado as exéquias de Iararana onde eu tentava reproduzir um rito funerário indígena descrito por Darcy Ribeiro. Quando Helena da Catingueira – cadela que me acompanhou quando vim morar aqui – morreu, tentei reproduzir algo daquele rito. E, passado tantos anos, por ocasião dos oitenta anos do apagamento de Lampião em Angicos, voltei a pesquisar sobre a vida da Sussuarana – essa minha antiga paixão – e me deparei com a foto dela lavando com álcool os ossos do diabo loiro. Agora era eu que não segurava as lágrimas. A carona estava chegando ao fim. Ele me agradeceu com a sinceridade dos que sabem o que é conversar com pedra e com pássaro, dos que sabem a alegria que é banhar de rio e fazer festa pra chegança das chuvas. Só consegui dizer: Me liga mesmo viu e no fim do ano vamos. Ele sorriu para Maria e disse: Segue cuidando dela, deus abençoe vocês, ainda essa semana vou pedir pro meu pai botar vocês nas orações dele, as orações dele abrem caminhos. Nos despedimos. Trinta minutos depois chegamos à escola de Maria. Em Cruz das Almas. E não pude deixar de pensar que toda Cruz das Almas foi um dia entroncamento de aboiadores, encruzilhada onde os vaqueiros descansavam, se divertiam e rezavam. Quando cheguei em casa, ao cair da noite, continuei a chafurdar no google histórias da Sussuarana e me deparei com uma matéria antiga, da folha de são Paulo, sobre a pesquisa de Élise Jasmin, sensacionalisticamente intitulada: Maria Bonita era “poser”, Dadá não. Pensei: nem todo sensacionalismo é falso, nem toda verdade é flutuante. Abandonei a pesquisa e fui montar um quebra-cabeças com Maria. Depois brincamos de dominó e jogo da memória. Cansados, deitamos na rede e adormecemos cantando juntos terral.

nuno g.

Um comentário:

  1. amigo Nuno, tio Nuno, cronista e poeta, mas acima de tudo, gente da gente.. gente boa pra danar. Esta cronica revela vc e sua tenra bondade.
    Parabens!!!!

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