para ayla andrade,
Assim tão simples tu definiu. Faz tempo, mas é agora. Tem coisa que não se perde, tem eternidade que não desbota. Alimentar peixes com baião-de-dois, sentir cheiro de verde e lavanda ou simplesmente ler para quem se ama. Tudo tão simples. Prazeres mínimos que só conhecem as almas claras. Como as águas daquele rio onde até hoje se vê tuas pegadas. Lembro que tinha uns caramujos, tinha uns bêbados na outra margem – mas na verdade não tinha nada além do que batizastes marulho, canto de onça antiga: procissão de presságios. Daqui a pouco outra vez vai ser madrugada. Escuto tu lendo henry miller com essa voz tão desapressada. Engraçado pensar que nada se perdeu. O barulho do ventilador lutando em vão contra aquele calorão desmedido. Nossas risadas brincando no casarão. Beira de rio, Jaguaribe encantado. Não importa se era domingo ou sábado. Diferente dos outros passados era tempo que nunca virou nada. Por isso teu corpo ainda traz aquele cheiro. Por isso meu olhar ainda se perde ainda se agiganta ainda vagueia desajeitado pelas margens. Como é difícil se entender em silêncio. Ficar bêbado juntos e juntos saber esperar tranquilamente a ressaca. Tudo mudou e não mudou nada. Cada rio que cruzo é como revisitar aquelas águas. Nelas tua sombra e nas margens teus pés. Prazeres mínimos – saudade boa de saber que ainda tem chuva nos teus olhos. Desaguamos em outros, nos desdobramos de fato. Tua solidão caminhou algumas vezes ao meu lado. Sempre me arde a pele quando olho na parede a inscrição: rua do meu pai. Jardim de flores povoado de cães & gatos: Iggy, basquiat, damas da noite. O paraguassú já me disse muito, hoje não me diz mais nada. Tem rio que é assim, se desfaz, se desmancha, se torna miragem sem asas. (...) tem trégua que sabe à lágrima, fui ali comprar um cigarro e te ouvi dizendo esse cigarro te mata. No caminho vi o rio e ele outra vez não me disse nada. E rio quando perde marulho nem madrugada salva. Aos três de agosto de dois mil e seis te mandei um poema por imail e agora que o releio o entendo. Dizia coisas que só fazem sentido agora. Um cartão de visitas de Alberto da Cunha Melo. Nele hoje tão claro, tua escada para o nada e a distância entre mim e minha morada. Escrever boniteza de madrugada é coisa boa demais. Daqueles prazeres mínimos que se vive à beira dos rios. E de tanto tentar quem sabe um dia a gente aprende. A escrever bem. A amar mais. A deixar pra trás quem não entendeu nada. E de tanto nada entender feriu de deixar cicatriz. Daquelas que não se apagam. Daquelas que como tu diz: servem pra nos lembrar do que não repetir. Exu me ofereceu cocaína: coisas que acontecem quando se está vivendo na encruzilhada. Disse-lhe hoje não muito obrigado e lhe dei dois cigarros: tem coisas que só se pode escrever de cara. Tudo assim tão simples. Como a luz nascendo nas pedras da chapada do apodi: só os olhos de alice vendo. Como benício refazendo a casa verde com massinha de modelar. Tem gente que clareia alma alheia, ainda quando vem turva e salobra, ainda quando parece não se acreditar em mais nada. Revisitar o rio, revisitar a casa. Ouvir tua voz não deixando esquecer que existem outras cicatrizes: as que nos dão vontade de sangrar novamente. É dos prazeres mínimos que tenho saudade também. Da beira de rio ainda mais real por ser imaginária. Das palavras que lançamos aos ventos, que batem nos ouvidos e voltam pro coração. Sempre. Aqui. Nesse não-lugar habitado por rios, bumerangues & fantasmas.
Cachoeira, 11 de maio de 17.
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