terça-feira, 23 de maio de 2017

desapontamento antibiográfico IV: a queda do céu, gente com buraco no peito & escadas para o nada.

Quando abri os olhos
  já era tarde:
o céu já havia caído
  e o buraco já estava lá
– cinzas, ossos, perfume & seda –
  era tudo que restava
um rio calado, uma cidade enfadada
  – cílios de arame farpado –
na boca até o mel sabendo a amargo...

quando abri os olhos
os mortos já estavam mortos
o fogo já em estado fátuo
– alma tem tempo próprio
se demora pra assentar coisas de dentro
limpar os trastes, arrumar a casa
se desfazer das tranqueiras
jogar fora o lixo acumulado nas entranhas
– alma vive longe
é a víscera que quando inflama canta
é o jardim que floresce quando machucado...

quando abri os olhos
esses cílios de arame farpado já estavam aqui
– cinzas, ossos, perfume & seda –
  era tudo que restava
onça ainda cantava
pedra ainda ensinava
e distante daqui,
  bem distante
corria um rio que ainda marulhava
respirava uma cidade que ainda dançava
&
embora fosse tarde
o céu já tivesse caído
e o buraco no peito fosse irremediável
havia um menino que paria borboletas
                                   tinha na pele todas as idades
e insistia em brincar de
  – com escaravelhos & estrelas –
    construir escadas
      que
        invariavelmente
          levariam outra vez
           ao nada de sempre...



nuno g.

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