sexta-feira, 12 de maio de 2017

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Olho e o que vejo me assusta. Bem menos que o assombro que me acompanhava antes. Que me fez ser o que fui por anos e anos. Tímido, recluso e ensimesmado. A poesia foi a mão que me disse venha, o mundo não é assim de todo mal e se sim é algo perigoso esse risco vale a pena, pois no fim das contas é tudo que se tem, é tudo que se pode aqui onde estamos, agarrei essa mão de com força, como quem não tem nada mais, como quem se encontra ante o último abraço. Tempo passou, rio correu, gente veio gente se foi. Primeiro pensei que quando muito algo havia já atingido por poder cantar um blues pra esfarinhar os ossos da saudade – não era nada ainda, ou melhor: era só um bom começo; favorável a persistência, diriam os caules de milefólio. Pé quente cabeça fria, em frente sempre. Coisa melhor haveria de vir. Caldeirão que muito se mexe apura o chá que se cozinha. Ainda que se demais se mexa se estraga o feitiço. Arquitetura difícil, magia braba e delicada – obrigação de ofício, imposição do destino, sina carregada & benção de poder aniquilar algazarra toda e escutar onças cantando: de poder no meio da estúpida sucessão de imagens e futilidades olhar e ver a arcaica carroça de fogo passeando pelo vale sagrado. Ainda olho e o que vejo me assusta, mesmo sabendo tudo o que sei – mesmo tendo sobrevivido a tudo que sobrevivi. Exu me chamou e me mandou escolher. Exu me soprou um segredo que é nosso: os que sobrevivem ou os que transcendem, mas isso depende da força que tu conserva nas tuas pernas, da natureza das asas que florescem em teu espírito, das capoeiras que abrem a foice da tua imaginação. Ninguém nessa vida é maior do que pode ser. Façanha nenhuma se pode empreender para além daquele repertório que nos antecede. Só o amor abre brecha. Perdão não é pra todo mundo, compaixão muito menos. É que não são só palavras. São larvas são musgos são esperas que nos antecedem e que aguardam oxigênio de gestos nossos. São sentimentos, silêncios, abrigos antigos que espreitam nossos passos desengonçados e sussurram enquanto estamos perdidos. A tristeza ou a alegria independem do intento que move nossa fábula. A história é antiga e não nos é dado conhecer sua origem e sua trajetória, mas por um desejo estranho e tortas veredas nos chegam os instrumentos as ferramentas os mecanismos para seguir caminhando e reconectando as linhas de força que escapam à nossa vã e obcecada razão. O mundo nos antecede como o punhal antecede à mão do que o amola. Como a presa antecede à fome do abutre que a persegue. Como a ilha ao náufrago que encontra areia para seu sono e descanso à sua ânsia de entregar-se à pureza de seus delírios. Ainda sabendo disso tudo olho e o que vejo me assusta. Escrevo. Enlouqueço. Entorpeço meus sentidos e abro minha pele ao que me trouxer o amanhã. Semeei um jardim e água não havia. Semeei em terra infértil. Hoje exu venceu. No susto dos meus olhos uma delicada borboleta acena de longe dissolvendo todas as promessas que não sobreviveram à véspera...

nuno g.

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