Olho e o que vejo me assusta. Bem
menos que o assombro que me acompanhava antes. Que me fez ser o que fui por
anos e anos. Tímido, recluso e ensimesmado. A poesia foi a mão que me disse venha, o mundo não é assim de todo mal e se
sim é algo perigoso esse risco vale a pena, pois no fim das contas é tudo que
se tem, é tudo que se pode aqui onde estamos, agarrei essa mão de com
força, como quem não tem nada mais, como quem se encontra ante o último abraço.
Tempo passou, rio correu, gente veio gente se foi. Primeiro pensei que quando
muito algo havia já atingido por poder cantar um blues pra esfarinhar os ossos
da saudade – não era nada ainda, ou melhor: era só um bom começo; favorável a persistência, diriam os
caules de milefólio. Pé quente cabeça fria, em frente sempre. Coisa melhor
haveria de vir. Caldeirão que muito se mexe apura o chá que se cozinha. Ainda que
se demais se mexa se estraga o feitiço. Arquitetura difícil, magia braba e
delicada – obrigação de ofício, imposição do destino, sina carregada & benção
de poder aniquilar algazarra toda e escutar onças cantando: de poder no meio da
estúpida sucessão de imagens e futilidades olhar e ver a arcaica carroça de
fogo passeando pelo vale sagrado. Ainda olho e o que vejo me assusta, mesmo
sabendo tudo o que sei – mesmo tendo sobrevivido a tudo que sobrevivi. Exu me
chamou e me mandou escolher. Exu me soprou um segredo que é nosso: os que sobrevivem ou os que transcendem, mas
isso depende da força que tu conserva nas tuas pernas, da natureza das asas que
florescem em teu espírito, das capoeiras que abrem a foice da tua imaginação.
Ninguém nessa vida é maior do que pode ser. Façanha nenhuma se pode empreender
para além daquele repertório que nos antecede. Só o amor abre brecha. Perdão não
é pra todo mundo, compaixão muito menos. É que não são só palavras. São larvas são
musgos são esperas que nos antecedem e que aguardam oxigênio de gestos nossos. São
sentimentos, silêncios, abrigos antigos que espreitam nossos passos desengonçados
e sussurram enquanto estamos perdidos. A tristeza ou a alegria independem do
intento que move nossa fábula. A história é antiga e não nos é dado conhecer
sua origem e sua trajetória, mas por um desejo estranho e tortas veredas nos
chegam os instrumentos as ferramentas os mecanismos para seguir caminhando e
reconectando as linhas de força que escapam à nossa vã e obcecada razão. O mundo
nos antecede como o punhal antecede à mão do que o amola. Como a presa antecede
à fome do abutre que a persegue. Como a ilha ao náufrago que encontra areia
para seu sono e descanso à sua ânsia de entregar-se à pureza de seus delírios. Ainda
sabendo disso tudo olho e o que vejo me assusta. Escrevo. Enlouqueço. Entorpeço
meus sentidos e abro minha pele ao que me trouxer o amanhã. Semeei um jardim e
água não havia. Semeei em terra infértil. Hoje exu venceu. No susto dos meus
olhos uma delicada borboleta acena de longe dissolvendo todas as promessas que não
sobreviveram à véspera...
nuno g.
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