Sábado: cerveja, feijoada, alice. As janelas abertas,
escancaradas, exercendo sua devoção à passagem do tempo. Pedra antiga. Pedra
tingida. Pedra estranhamente deseducada pela delicadeza. Pedra reverenciando o
rio, a passagem, as vazantes: a fartura das vazantes. Sábado: paraguassú
transubstanciado em Jaguaribe. Sábado, verso antigo encontrado entre teias de
aranha: de tanto ser ilha perdi o temor dos naufrágios. Sábado: cachoeira de
crianças no curiaxito resistindo aos arranha-céus, ao asfalto, às teorias
pedagógicas que em doses homeopáticas anestesiam a má-consciência da
pequena-burguesia febril. Elvis está vivo, calamaro, o balanço da
rede, tempo nublado. Fazia tempo que tudo não estava tão bem. Tudo parece
está bem novamente. O mar voltou ao seu leito. Meus pés regressaram a algum
chão. Me arde, calamaro, me está
queimando. Olho a jangada, me distraio. Penso na viagem para a qual
construí essa jangada. Penso em todo o material que utilizei nessa empreitada:
as madeiras, o sal e os fios embaraçados de meu cabelo. A travessia é larga, o
sertão é grande, os rios estão assoreados. Tentarei pelo mar, margeando a
costa. Olhando as falésias. As dunas. Os corações de cristal. Os gaviões.
Principalmente os gaviões. Ouvirei outra vez o canto das onças? Que cor terá
esse canto agora? E com que mãos escalarei o velho paredão de pedra? Você
estará lá? Encontrarei ninho em teus braços? Estarei sendo enganado por essa
brisa?... Perdão, é que a vida me tornou um bocadinho cético, mas ainda anseio
evitar o cinismo... ainda trago
aquele desejo arcaico de retornar ao corpo em que nasci: aquele que tinha asas
e sabia fabricar céus e arquitetar cosmogonias e depositá-las aos teus pés...
oferenda de tiquira nas terras do araçagi... essa brisa que embala esse
sábado... essa brisa... teus beijos... cidadão
instigado... alguma música... essa brisa... teus pés em minhas mãos... teus
lábios em meus lábios... os navios no horizonte... as ruínas na terceira
margem... as onças cantando... o paredão de pedra... o mistério das terras do
mato alto... o segredo do velho da carroça de fogo... os blues que compus
enquanto você esteve por aí... os blues que compus quando estávamos aprendendo
o ofício de purificar metais com fogo... os blues que compus quando aprendíamos
a manejar esses instrumentos que temos agora... o silêncio não espera de nós
arqueologias, o silêncio grita por um futuro... anêmonas, vestimentas de
piratas e rebanhos de aves de arribação... é sábado – e a geografia dessa tarde
extrai excessos de meu corpo, permito que essas forças me moldem, permito sua
ação sobre meu desejo, me permito que ela me possua e que sinalize paragens
desconhecidas, que converta todos os sintomas numa cálida memória de lugares
inóspitos e suas esperas: ainda as mais longas, ainda as mais tardias, ainda as
mais incertas...
nuno g.
Cachoeira, 16 de julho de 2016.
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