sábado, 4 de outubro de 2025

pedagogia

como ensinar aos filhos que há sempre um abismo entre o que queremos e o que é

    como ensiná-los que os sonhos não são fuga e sim caminho árduo e tarefa

          como aprender com eles a cair uma e outra vez e ainda assim seguir subindo

              como deixar que eles nos mostrem que o tempo não é uma linha

e que progresso e evolução são meros preconceitos de uma época adoecida

  como seguir caminhando depois de saber que nas águas os corpos afundam

      como olhar nos olhos dos grãos de milho que ofuscam a verdade de nossas retinas

          como a coragem de abandonar o que somos para que a criança nos guie 

como ensinar que não há morte sem vida

  e que todo choro contêm mundos

como despertar e despertar e despertar quando o sono parece invencível

  como aprender com as crianças que a prosa há de passar e o desencanto é provisório

     como sobreviver à ferocidade que respira em nossa nuca

como tocar os dedos e os cabelos da alegria que vem de longe e que é vento

como dizer fogo fátuo numa língua que não traz palavras 

como dançar ciranda e entender que tudo é perversão e brincadeira

  e que não há tanta distinção assim entre a crueldade e o prazer

como guiar na guerra e reconhecer quando a trégua se faz necessária

  como não desistir quando se percebe imerso na cegueira do absoluto

como ser rio e árvore ao mesmo tempo

  e remar com as unhas até a margem inexistente

como demonstrar com gestos que o amor é um sol que se confunde com esquecimento

  como ser lua quando tudo é eclipse e eternidade

como sair de si para chegar a ser o que se é

  como viver sem recordar o nosso nome a nossa face & os afetos que nos antecedem

como lembrar que somos corpos e que em nossos corpos pulsa a aurora febril do gozo

como aprender a ser o que não se é para se chegar onde sempre estivemos

como caminhar no fio amolado da faca que une e separa a morte e o nada

como não dizer essa larva que ferve em nossos subterrâneos

  como ser poeta sem deixar de ser humano

    como ser humano quando a humanidade se converte em mão que apaga sonhos

       como não deixar de lado as ruas e as praças ainda sem sair de casa

com qual tinta se escreve na umidade íntima dos caracóis

com quais cores se desenham as escamas das serpentes

quantas crianças são necessárias para que possamos chegar às nuvens

como ensinar aos filhos que a dor é necessária

  e que é preciso saber a arte de abraçá-la

     e que é preciso entoar canções para afugentá-la

        e que é preciso conversar com fantasmas e habitar ruínas

           e que é preciso desfazer-se das roupas que não servem mais

              e que mesmo mutilados e cheios de cicatrizes

ainda temos essa língua que se desdobra em direção ao infinito

como conservar delicadezas quanto tudo é monstruosidade

  como apagar incêndios e seguir amando o fogo

como acatar os imperativos da estranha lucidez que arde nas vísceras da loucura

como reunir em um mesmo movimento os sentimentos nascidos em diáspora

  entre o que seduz e o que é seduzido existem muitos túneis

em todos eles há sempre uma criança dizendo sim

    e estendendo a mão ao tenebroso que solicita seu carinho

  entre uma e estrela e outra haverá sempre uma tempestade

e só as crianças guardam asas para atravessá-las

  Hermenegildo aqui. Escrevendo com grãos de areia e milho um livro Vermelho.


nuno g.

Lima, 04 de outubro de 2025.

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