como ensinar aos filhos que há sempre um abismo entre o que queremos e o que é
como ensiná-los que os sonhos não são fuga e sim caminho árduo e tarefa
como aprender com eles a cair uma e outra vez e ainda assim seguir subindo
como deixar que eles nos mostrem que o tempo não é uma linha
e que progresso e evolução são meros preconceitos de uma época adoecida
como seguir caminhando depois de saber que nas águas os corpos afundam
como olhar nos olhos dos grãos de milho que ofuscam a verdade de nossas retinas
como a coragem de abandonar o que somos para que a criança nos guie
como ensinar que não há morte sem vida
e que todo choro contêm mundos
como despertar e despertar e despertar quando o sono parece invencível
como aprender com as crianças que a prosa há de passar e o desencanto é provisório
como sobreviver à ferocidade que respira em nossa nuca
como tocar os dedos e os cabelos da alegria que vem de longe e que é vento
como dizer fogo fátuo numa língua que não traz palavras
como dançar ciranda e entender que tudo é perversão e brincadeira
e que não há tanta distinção assim entre a crueldade e o prazer
como guiar na guerra e reconhecer quando a trégua se faz necessária
como não desistir quando se percebe imerso na cegueira do absoluto
como ser rio e árvore ao mesmo tempo
e remar com as unhas até a margem inexistente
como demonstrar com gestos que o amor é um sol que se confunde com esquecimento
como ser lua quando tudo é eclipse e eternidade
como sair de si para chegar a ser o que se é
como viver sem recordar o nosso nome a nossa face & os afetos que nos antecedem
como lembrar que somos corpos e que em nossos corpos pulsa a aurora febril do gozo
como aprender a ser o que não se é para se chegar onde sempre estivemos
como caminhar no fio amolado da faca que une e separa a morte e o nada
como não dizer essa larva que ferve em nossos subterrâneos
como ser poeta sem deixar de ser humano
como ser humano quando a humanidade se converte em mão que apaga sonhos
como não deixar de lado as ruas e as praças ainda sem sair de casa
com qual tinta se escreve na umidade íntima dos caracóis
com quais cores se desenham as escamas das serpentes
quantas crianças são necessárias para que possamos chegar às nuvens
como ensinar aos filhos que a dor é necessária
e que é preciso saber a arte de abraçá-la
e que é preciso entoar canções para afugentá-la
e que é preciso conversar com fantasmas e habitar ruínas
e que é preciso desfazer-se das roupas que não servem mais
e que mesmo mutilados e cheios de cicatrizes
ainda temos essa língua que se desdobra em direção ao infinito
como conservar delicadezas quanto tudo é monstruosidade
como apagar incêndios e seguir amando o fogo
como acatar os imperativos da estranha lucidez que arde nas vísceras da loucura
como reunir em um mesmo movimento os sentimentos nascidos em diáspora
entre o que seduz e o que é seduzido existem muitos túneis
em todos eles há sempre uma criança dizendo sim
e estendendo a mão ao tenebroso que solicita seu carinho
entre uma e estrela e outra haverá sempre uma tempestade
e só as crianças guardam asas para atravessá-las
Hermenegildo aqui. Escrevendo com grãos de areia e milho um livro Vermelho.
nuno g.
Lima, 04 de outubro de 2025.
Uma viagem muito leve. Simplesmente Nuno!!
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