meus amigos estão nus e dançam no deserto onde a morte não existe
estão famintos e sedentos e brincam com animais estranhos que saltam de um oásis a outro
como os pensamentos e os sonhos e os afetos
e todas as coisas que se permitem ser atraídas para fora do leito determinado
meus amigos estão outra vez reunidos em volta do fogo
e conversam sobre o terror em Gaza sobre o amor sobre a fúria que vem das estrelas
e sobre coisas incompreensíveis sobre sentimentos impronunciáveis
e fazem amor com as pedras com as árvores com as águas
trazem os corpos lambuzados de mel e em seus sorrisos abundam pressentimentos
de uma atmosfera ardente e cheia de esperança e de luz e de oxigênio e de desejo
e de uma carne que arde tão intensamente
que chegamos a desconfiar que é algo além de carne
e em seus olhos orbitam planetas astros meteoros e outras feras inomináveis
meus amigos estão mais famintos que os famélicos da terra
mais sedentos que os grãos de areia do deserto
onde habitam e descobrem que a morte nunca existiu
e que a vida é um sonho interminável e que todos os labirintos são invenções
de divindades cruéis e perversas que nos amam tanto e com tanto fervor
que nos obrigam a nos arrastarmos pelos subterrâneos obscuros
em busca de objetos sagrados e misteriosos
mesmo sabendo que a única coisa realmente sagrada e misteriosa
é a força do poema é a força do sexo é a força que une uma geração à outra
é a força que pulsa na carta do enforcado enquanto a luz exibe sua exuberância no céu
da cidade cinza construída às margens do mar no coração do deserto
onde voltamos a nos encontrar para celebrar o fim do mundo
e a posse da sabedoria do abandono e a descoberta de que sempre estivemos perdidos
e de que nada disso era misterioso nem sagrado e que apesar de tudo
restará sempre essa força que conduz nossos corpos ao sexo e nossas mãos
ao poema e enquanto cantamos aos ossos enferrujados vislumbramos automóveis verdes
cruzando a noite a madrugada e a fumaça das ervas que fumamos e fumamos
desesperadamente como quem sabe que apesar de não existir a morte está presente
e a qualquer momento pode nos abraçar e nos levar do deserto
e enterrar tudo que somos em algum lugar extremamente branco e frio
onde as mãos do Anjo Azul não poderão chegar
e o canto das onças e do vento Aracati não poderá ser escutado
e as feras nos avessarão as vísceras e estaremos outra vez distantes
em Milão no Aquiraz nas ruas do Benfica ou em algum estranho rincão da América Latina
onde se sucedem golpes de estado e florescem tiranos e ditadores
e onde o silêncio parece ser uma glória inalcançável
e o poema se esconde entre nuvens de agrotóxicos
e as flores insistem em florescer e iluminar o deserto e acender as brasas do amanhã
e dizer não não não não não infinitas vezes
e escrever poemas e mais poemas e mais poemas e mais poemas
sonhando com amigos que estão agora no Crato ou na Cidade do México ou
em alguma ilha perdida do Pacífico ou em São Bernardo das Éguas Russas
ou nas assépticas ruas da triste e entediante cidade de São Paulo
ou nos puteiros da heroica e insana cidade de Cachoeira
enquanto a corrupção o narcotráfico e a imundície do coração sujo dos homens sujos
vai corroendo nossa esperança e nossa vontade de trepar
e nossa necessidade de escrever cem mil poemas
para todos os arcaicos demônios que nos guiaram até aqui e enquanto dançamos
acendemos velas e mais velas e mais velas que vão formando arabescos intermináveis
e incompreensíveis e vão povoando o mundo de uma beleza rara e invencível
que desafia a morte e o deserto onde a morte nunca existiu
e os meus amigos vão aparecendo e desaparecendo como as ondas de vaga-lumes
que cruzam as florestas em direção a algum lugar onde nunca estivemos
e onde acreditamos que devam estar germinando as sementes do amor e do tesão e da gula
e da febre e dos milhares de poemas que esperam a hora de vir à flor da pele
meus amigos cantam um canto estranho onde a morte não existe
e tudo está vivo e tudo se entrelaça com tudo
como cipós raízes e todas as formas de vida que se juntam nos corais e todas as cores
que existem nas pinturas e nos sonhos e nos corpos dos jovens que vivem como
se não houvesse amanhã nem ontem nem agora nem nada além
do além onde estão imersos e onde se beijam se abraçam se lambuzam de mel e se tocam
e produzem sons e uivam e gemem e soletram rosas e girassóis e entram em transe
e começam a entoar cânticos antigos em línguas que todos acreditavam mortas
e essas canções dizem exatamente que a morte não existe
e que os desertos são mais que desertos e que os poemas são mais que poemas
e que a vida é mais que a vida e que os sonhos são muito mais que simples sonhos
e os meus amigos vão se despedindo e desaparecendo e
vão outra vez me abandonando e apenas o silêncio e a luz do silêncio e o escuro do silêncio
e a grande noite do silêncio vai se expandindo em meu tórax e vai se transformando numa
capa de chuva ou num caracol imenso onde meu corpo vai se recolhendo
e vai definhando e vai murchando e minhas mãos agora aprisionadas
escrevem em suas paredes internas mais um poema
que é mais um grito que é mais que um grito
que é uma maneira de produzir desertos onde não existem mortes
onde dançam meus amigos com animais estranhos e coloridos
onde transam meus amigos e se lambuzam de mel e de fezes e fumam ervas de esperança
enquanto a guerra a miséria o ódio vai destruindo a terra
e os homens de corações sujos vão corrompendo o milagre da vida
e os jornais vão espalhando mentiras e mais mentiras que são mais que mentiras
a morte não existe a morte não existe a morte não existe a morte
é mais que a morte é seu aquém é seu além é seu entorno é sua promessa é
a flecha que dela escapa em direção ao rosto e à máscara
uma puta passa na madrugada e meus amigos brincam com ela
e ela brinca com meus amigos e nós brincamos como
crianças que sabem que tudo é deserto
e que no deserto a morte não existe apesar de sabermos também
que estamos todos mortos e que a vida é um poema
nada mais nada menos que um poema
que escrevemos nas úmidas paredes do caracol
onde fomos aprisionados
antes que pudéssemos decidir uma vez mais regressar aos braços do fogo
onde estão reunidos os meus amigos e suas capas de chuva e suas pequenas alegrias
e suas insensatas maneiras de dizer de pensar de sentir e de ser o que são
e o que nunca foram nem nunca poderão ser
meus amigos estão todos aqui reunidos neste lugar onde a morte nunca existirá outra vez
estão famintos e sedentos e brincam e dançam com animais que nunca existiram
nuno g.
Lima, 11 de outubro de 2025.
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