sexta-feira, 10 de outubro de 2025

canto para meus amigos

meus amigos estão nus e dançam no deserto onde a morte não existe

estão famintos e sedentos e brincam com animais estranhos que saltam de um oásis a outro

como os pensamentos e os sonhos e os afetos

e todas as coisas que se permitem ser atraídas para fora do leito determinado

meus amigos estão outra vez reunidos em volta do fogo

e conversam sobre o terror em Gaza sobre o amor sobre a fúria que vem das estrelas

e sobre coisas incompreensíveis sobre sentimentos impronunciáveis

e fazem amor com as pedras com as árvores com as águas

trazem os corpos lambuzados de mel e em seus sorrisos abundam pressentimentos

de uma atmosfera ardente e cheia de esperança e de luz e de oxigênio e de desejo

e de uma carne que arde tão intensamente 

que chegamos a desconfiar que é algo além de carne

e em seus olhos orbitam planetas astros meteoros e outras feras inomináveis

meus amigos estão mais famintos que os famélicos da terra

mais sedentos que os grãos de areia do deserto

onde habitam e descobrem que a morte nunca existiu

e que a vida é um sonho interminável e que todos os labirintos são invenções

de divindades cruéis e perversas que nos amam tanto e com tanto fervor

que nos obrigam a nos arrastarmos pelos subterrâneos obscuros

em busca de objetos sagrados e misteriosos

mesmo sabendo que a única coisa realmente sagrada e misteriosa

é a força do poema é a força do sexo é a força que une uma geração à outra

é a força que pulsa na carta do enforcado enquanto a luz exibe sua exuberância no céu

da cidade cinza construída às margens do mar no coração do deserto

onde voltamos a nos encontrar para celebrar o fim do mundo

e a posse da sabedoria do abandono e a descoberta de que sempre estivemos perdidos

e de que nada disso era misterioso nem sagrado e que apesar de tudo

restará sempre essa força que conduz nossos corpos ao sexo e nossas mãos

ao poema e enquanto cantamos aos ossos enferrujados vislumbramos automóveis verdes

cruzando a noite a madrugada e a fumaça das ervas que fumamos e fumamos

desesperadamente como quem sabe que apesar de não existir a morte está presente

e a qualquer momento pode nos abraçar e nos levar do deserto

e enterrar tudo que somos em algum lugar extremamente branco e frio

onde as mãos do Anjo Azul não poderão chegar

e o canto das onças e do vento Aracati não poderá ser escutado

e as feras nos avessarão as vísceras e estaremos outra vez distantes

em Milão no Aquiraz nas ruas do Benfica ou em algum estranho rincão da América Latina

onde se sucedem golpes de estado e florescem tiranos e ditadores

e onde o silêncio parece ser uma glória inalcançável

e o poema se esconde entre nuvens de agrotóxicos

e as flores insistem em florescer e iluminar o deserto e acender as brasas do amanhã

e dizer não não não não não infinitas vezes

e escrever poemas e mais poemas e mais poemas e mais poemas

sonhando com amigos que estão agora no Crato ou na Cidade do México ou

em alguma ilha perdida do Pacífico ou em São Bernardo das Éguas Russas

ou nas assépticas ruas da triste e entediante cidade de São Paulo

ou nos puteiros da heroica e insana cidade de Cachoeira

enquanto a corrupção o narcotráfico e a imundície do coração sujo dos homens sujos

vai corroendo nossa esperança e nossa vontade de trepar 

e nossa necessidade de escrever cem mil poemas 

para todos os arcaicos demônios que nos guiaram até aqui e enquanto dançamos

acendemos velas e mais velas e mais velas que vão formando arabescos intermináveis

e incompreensíveis e vão povoando o mundo de uma beleza rara e invencível

que desafia a morte e o deserto onde a morte nunca existiu

e os meus amigos vão aparecendo e desaparecendo como as ondas de vaga-lumes

que cruzam as florestas em direção a algum lugar onde nunca estivemos

e onde acreditamos que devam estar germinando as sementes do amor e do tesão e da gula

e da febre e dos milhares de poemas que esperam a hora de vir à flor da pele 

meus amigos cantam um canto estranho onde a morte não existe

e tudo está vivo e tudo se entrelaça com tudo

como cipós raízes e todas as formas de vida que se juntam nos corais e todas as cores

que existem nas pinturas e nos sonhos e nos corpos dos jovens que vivem como

se não houvesse amanhã nem ontem nem agora nem nada além

do além onde estão imersos e onde se beijam se abraçam se lambuzam de mel e se tocam

e produzem sons e uivam e gemem e soletram rosas e girassóis e entram em transe

e começam a entoar cânticos antigos em línguas que todos acreditavam mortas

e essas canções dizem exatamente que a morte não existe 

e que os desertos são mais que desertos e que os poemas são mais que poemas 

e que a vida é mais que a vida e que os sonhos são muito mais que simples sonhos 

e os meus amigos vão se despedindo e desaparecendo e

vão outra vez me abandonando e apenas o silêncio e a luz do silêncio e o escuro do silêncio

e a grande noite do silêncio vai se expandindo em meu tórax e vai se transformando numa

capa de chuva ou num caracol imenso onde meu corpo vai se recolhendo

e vai definhando e vai murchando e minhas mãos agora aprisionadas

escrevem em suas paredes internas mais um poema 

que é mais um grito que é mais que um grito

que é uma maneira de produzir desertos onde não existem mortes

onde dançam meus amigos com animais estranhos e coloridos

onde transam meus amigos e se lambuzam de mel e de fezes e fumam ervas de esperança

enquanto a guerra a miséria o ódio vai destruindo a terra

e os homens de corações sujos vão corrompendo o milagre da vida

e os jornais vão espalhando mentiras e mais mentiras que são mais que mentiras

a morte não existe a morte não existe a morte não existe a morte

é mais que a morte é seu aquém é seu além é seu entorno é sua promessa é

a flecha que dela escapa em direção ao rosto e à máscara

uma puta passa na madrugada e meus amigos brincam com ela 

e ela brinca com meus amigos e nós brincamos como

crianças que sabem que tudo é deserto 

e que no deserto a morte não existe apesar de sabermos também

que estamos todos mortos e que a vida é um poema

nada mais nada menos que um poema 

que escrevemos nas úmidas paredes do caracol

onde fomos aprisionados 

antes que pudéssemos decidir uma vez mais regressar aos braços do fogo 

onde estão reunidos os meus amigos e suas capas de chuva e suas pequenas alegrias 

e suas insensatas maneiras de dizer de pensar de sentir e de ser o que são 

e o que nunca foram nem nunca poderão ser

meus amigos estão todos aqui reunidos neste lugar onde a morte nunca existirá outra vez

estão famintos e sedentos e brincam e dançam com animais que nunca existiram


nuno g.

Lima, 11 de outubro de 2025.


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