quarta-feira, 20 de agosto de 2025

diário de um ex-assecla

 


    A melhor obra de teoria da história escrita nas Américas segue sendo um romance - Yo, el supremo - e não é para nada coincidência que seja paraguaio. Todo tempo perdido é irrecuperável Proust, lástima que não pudestes ler Kerouac para absorver esta lição imprescindível. O que não nos corrompe impulsiona à salvação, embora seja tarde demais para acreditarmos que o conceito de salvação tenha qualquer validade epistemológica. A errância encaminha em direção à sabedoria, entretanto o conceito de sabedoria também encontra-se demasiado contaminado e já não guarda nenhum valor que mereça ser perpetuado. Walter Benjamin preferiu a morte à vida na fronteira, minha mãe também: lamentável, mas o tempo das lamúrias está esgotado. Cruzando a avenida Brasil se chega ao mercado de Breña: os produtos mais baratos estão sempre do outro lado, por isso as árvores nunca alcançam o que buscam e só lhes resta resignar-se à sina a que foram destinadas. Parte da miséria em que estamos imersos reside em não podemos dizer que sim existe uma estranha forma de amor que se manifesta no apreço às correntes que impedem o movimento do ser; outra parte diz respeito a que todas as migrações contemporâneas estão submetidas a uma exigência externa de sobrevivência e ocorrem sob um regime compulsório e arbitrário. A vida parece mesmo iniciar e findar no mesmo gesto de violência. Tudo realmente parece obedecer ao enigmático instinto de regresso. Ainda que, sem inocência, já tenhamos acumulado suficiente experiência para saber que todo regresso se inscreve na esfera do trágico. Nem Borges, nem Cortázar, apenas uma sensação de que não pertencemos ao mundo ao qual fomos condenados. Os materiais que exigem nosso esforço assemelham-se aos búzios da praia de Piedade. Perdemos a capacidade de leitura e as estratégias que desenvolvemos têm se revelado excessivamente precárias. Depois da guerra haverá sempre outra guerra à espreita. Só o mar apascenta um coração em fúria - e todos os corações saudáveis são necessariamente corações habitados pelas fúrias. O som das máquinas e dos operários bombardeiam o silêncio, a modernidade é execrável mas nossa incompetência não nos permite encontrar vias de acesso para além dos territórios sobre os quais ela avança como avança um mendigo sobre os restos de comida atirados no lixo. Os modismos intelectuais bem servem à economia perversa de uma academia pragmática que se alimenta vorazmente daqueles que sua voz silencia. Antes de enunciar algo que se conecte intimamente a algum futuro desejável é preciso andar em círculos, devorar algo da própria pele e beber algumas gotas do próprio sangue. Algo de teoria não deveria causar dano desde que essa seja também memória de tudo que lhe antecede. É difícil aceitar que os objetos não são objetos e que suas vozes destoam do que se deseja ouvir. São tempos de cegueira e a tendência do cego é quase sempre caminhar em direção ao abismo mais próximo. Augusto Roa Bastos é mais que um nome, é uma bússola no interior de um tempo onde toda gravidade foi dissolvida. Venho de uma terra bonita com nome de onça. Tapuias, vaqueiros e pistoleiros a trouxeram até meus braços como um noivo ébrio de romantismo e temor à solidão traz sua noiva. A deixaram aqui e partiram para o além e o esquecimento. Não há dúvidas que labirintos foi por muito tempo uma boa metáfora, mas também aprendemos que as metáforas não levam a lugar nenhum e que os labirintos tem pouca serventia quando se trata de cartografar infernos e cemitérios. Azulejos azuis é a imagem mais bonita que guardo da minha infância. Cidade pequena, cidade grande é, por muitos motivos, uma obra fascinante e premonitória. Gosto dela como os fantasmas gostam do que lhes traz a esperança de voltar à carne. Gosto dela como a lâmina da faca gosta da superfície que corta. Escapei da cegueira por um triz. Descontruir enganos é a tarefa mais árdua. Não há engano maior que os enganos que nos impõem o Estado e os silêncios da primeira infância. Deles provêm todo o terror que se descortina quando despertamos da insônia que nos aniquila a capacidade de dormir. Os operários seguem produzindo ruínas e o meio-dia parece cada vez mais distante. Amar a corda que o enforca consiste na razão de ser do enforcado. Dizer isso tornou-se extremamente perigoso agora, mas não existe pensamento onde não existe perigo. Os náufragos sabem, ainda que sua condição de náufragos não os permita regressar plenamente à arte da pirataria. O dente de Adélia seguirá latejando por toda a eternidade. Judite não conseguirá estancar sua hemorragia. Hermenegildo é escravo do seu próprio silêncio. Tudo que é irrecuperável produz tormenta e deliciosas sensações. O oposto da morte não é a vida, nem o amor. O oposto da morte é a capacidade que temos de morrermos em vida. Talvez seja isso que os suicidas se recusam a aceitar. Talvez por essa razão se neguem à vida na fronteira. Mas aqui chegamos a um campo semântico demasiado complexo onde a palavra talvez encobre muitas coisas. E as coisas que ela encobre são justamente a que determinam o caminho que seguimos, as máscaras que usamos e os modos através dos quais produzimos silêncios e reproduzimos violência. É muito difícil seguir escrevendo poesia depois de Augusto dos Anjos. Mas é preciso insistir, por alguma razão que me é tão alheia quanto a paz. Depois de tudo, nos resta ainda a imensa tarefa de fazer do mundo terra arrasada para que as gerações que nos seguirão possam ter espaço suficiente para inventar algo próximo ao que entendemos como liberdade. Espero, sinceramente, que cuidem para que esse algo não se torne tão inútil quanto as bandeiras que herdamos e que reconheçam que nenhuma herança poderia ter mais valor que o nada onde lhes tocará viver. Quem sabe, serão eles os responsáveis pela verdadeira explosão do tempo e, em cada estilhaço, encontrarão os meios adequados para superar as dores do esquecimento e os imaginários medos que, inconscientemente, os legamos como parte do nada que lhe ofertamos. Alzira sabe que não repetir-se é muito distinto a alcançar uma efetiva superação. Por isso regressou ao sertão. Por essa razão voltou a comer feijão de corda com as mãos. Ao conversar com a lua e com o rio finalmente alcançou a graça suprema de ser onça outra vez. Além!


nuno g.

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