sábado, 16 de agosto de 2025

hay otras maneras de bailar II

     Ainda no verão é frio o inferno, assim diziam os ameríndios antes. Abandonai toda e qualquer esperança os que cheguem a essa encruzilhada, assim dizia quem veio do outro lado do mar. A árvore do esquecimento segue no mesmo lugar: crescendo para cima e para baixo. Ao contrário do que se propagou somente os melhores alcançarão o inferno - o resto será condenado à rememoração perpétua. Os monges sabem que o mundo já foi menos opaco, embora sempre tenha sido povoado por súplicas e abismos intransponíveis. Faz tempo não converso com o Senhor do Fogo e da Justiça, mas o terror de nosso último encontro ainda ecoa aqui. Inferno e Encruzilhada: lugares onde não existe sequer a palavra condenação. Alzira apenas olha o rio, pressente a presença do veneno que traz a morte dentro. Adélia se entrega à dor de dente, como quem se entrega de corpo e alma a uma divindade que todos esqueceram. Depois do café, as árduas tarefas da vida ordinária. Depois dos sonhos, a difícil missão de habitar o cotidiano. O espanto de quem por primeira vez presenciou o milho pipocar deve guardar alguma semelhança com a tristeza da mãe que inutilmente tenta fazer aviõezinhos de papel voarem num sábado qualquer. Ou talvez não. Amar o frio é amar a si mesmo. Enfrentar-se ao mundo sem o refúgio da esperança exige uma coragem para a qual nossos dicionários não têm definição. O rio segue correndo ao som das onças. Ignorando o veneno e a morte que há séculos insistem em contaminar a pureza de suas águas.


nuno g.

Campo de Marte, 16 de agosto de 2025.

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