quinta-feira, 3 de julho de 2025

breve história da lucidez

 para Larissa Gonçalves,


    Antes, muito antes, todas as plantas morriam. Não era descuido. Não era inércia. Não era ausência. Apenas um modo de depositar energia. Todos os meses de julho meu joelho esquerdo dói e sangra. Dói insuportavelmente. E sangra de tanto chão. Talvez agora que as plantas pararam de morrer e que pude entender algo sobre o sacrifício e a afirmação da vida sobre todas as coisas essa dor e esse sangue se realizem plenamente. Ainda que Assucena insista em enfiar pedaços de frango, restos de plástico e qualquer outra porcaria nos buracos do nariz sei que está tudo bem. Ainda que não esteja. Ainda que nunca tenha estado. Ainda que eu sinta a certeza de que nunca chegará a estar. Ainda assim é somo se soubesse que está tudo bem. E que a dor e o sangue são tão necessários quanto a escrita, a fala e o sexo. E que os sonhos são mais reais que tudo que é ordinário e comum. E que não é possível viver como antes quando se entende que não é o mesmo dizer que tudo é passageiro e transitório que sentir nas vísceras que tudo é passageiro e transitório. A fé, obscura e enigmática, oscila entre o canto do anjo vermelho e o sino assombroso da catedral. Existem coisas que nada pode alterar, essas parecem ser realmente as que importam. Quando se percebe que apesar das aparências tudo que aconteceu um dia segue sempre acontecendo se pode lentamente permitir que asas floresçam onde antes havia apenas um casco duro e opaco como o casco das tartarugas amazônicas. As plantas pararam de morrer, faz dias que não vemos o sol. O mar gelado do Pacífico me acaricia. Atravessa a vida de Alice desde o Anáhuac até o Tawantinsuyu. Violência e barbárie escorrem aos grãos das mãos de L. Existem muitos nomes que não me são permitidos pronunciar. Existem muitas histórias que não posso narrar. Os mortos que caminham comigo me protegem da morte. Rogo a eles por mais dor e mais sangue. Rogo a eles por mais sacrifícios e entendimento. Rogo a eles que me ensinem a língua das rezas do futuro. E os vejo apontar para algum lugar subterrâneo onde já estive antes de estar aqui. Onde habitam vespas, moscas e muitos outros oráculos. As folhas de Tempo caem ao solo. O mar esbraveja. As plantas insistem em não mais morrer. Afirmar a vida sobre todas as coisas e nunca esquecer que somos menos e o mais sublime que podemos aspirar é o nada.


nuno g.

Campo de Marte, 03 de julho de 2025.

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