sábado, 12 de abril de 2025
haiku II
sábado, 5 de abril de 2025
haiku
para Lari,
um vento frio varre a cidade
meia-lua no céu
a criança entrega ao velho a flor sem-cor dos medos imaginários
Lima, 05 de abril de 2025.
sábado, 8 de março de 2025
à espera de má notícia
para Maria Zilá Lima Gonçalves,
(in memoriam)
Também de coisas desastrosas somos feitos: nós e o mundo.
Dona Antônia sonhou com aipim e comentou: aipim é vela!
A morte à espreita na margem do rio:
a morte e outras serpentes sonâmbulas.
Temos que estar preparados para tudo: o mundo e nós.
Alguns aipins cozinhavam e outros ficavam duros: nisso o espírito do sonho.
E as lágrimas desceram dos olhos vermelhos de Hermenegildo.
Seu aceno quase não escondia o ferimento.
Aos pés de minha avó, em sua memória e presença.
Encostei delicadamente a cabeça e morri mais uma vez.
A noite trouxe a calmaria das unhas ainda cheias das areias com que enterraram o ódio.
E no céu uma lua que olhava minha cabeça aos pés de minha avó.
A noite trouxe a certeza que as certezas não existem.
E a estrela que ensina que enterrar importa tanto quanto desenterrar.
Uma vela é mais que suficiente para nos recordar a relevância do escuro.
nuno g.
Toróró, 01/08 de março de 2025.
sábado, 22 de fevereiro de 2025
um chá com meu pai
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
as joias ou permissão e passagem
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
sonhos da vida toda
sonhei com um banquete, um banho de rio e com pessoas insuportáveis
(muitas pessoas insuportáveis)
sonhei com cárceres onde eu ficava aprisionado por engano
e amaldiçoei despertar antes de saber como era minha vida de prisioneiro
sonhei com perseguições implacáveis, assassinatos se desdobrando em outros assassinatos
e com a carta do diabo, da morte e do enforcado
sonhei com todas as mentiras que me soterraram a infância
e com a sucessão de pessoas insuportáveis que se satisfaziam sendo ainda mais insuportáveis
atravessei todos esses sonhos como um fantasma atravessa uma parede de vidro
sabendo que do outro lado da redoma existe um jardim povoado de pássaros
onde fascistas não conseguem respirar
onde mentiras não florescem
onde o silêncio só se rompe quando a palavra é necessária
sonhei milhares de sonhos se transmutando em poemas
sonhei com todos os passos do longo caminho da mediunidade
sonhei com o amor e a promessa e a chuva
sobre os campos de ervas e pedras sonâmbulas que guardam a história do mundo
sonhei com as mãos da insônia insistindo em agarrar a fumaça dos cigarros
e com os poemas eróticos que nunca cheguei a escrever
sonhei com o parque rio branco, com a praia de iracema antiga
e com navios de guerra e pirataria
sonhei com ondas esverdeadas como o lodo ou a esmeralda
e despertei na primeira noite de lua cheia depois do alinhamento dos planetas
era quase-março e eu estava quase-vivo
raios de sol escorriam do meu nariz
e a esperança verde seguia passeando solitária na cozinha de minha casa
sonhei com Cruz & Sousa, Augusto dos Anjos e Álvares de Azevedo
e fiquei extático ante o fogo como se nada na vida fosse outra coisa que não matéria sonhada
sonhei com punks caminhando na estrada
e com o suave movimento de uma relva que amanhece antes mesmo de nascer
antes mesmo de nascer...
nuno g.
Toróró, 11 de fevereiro de 2025.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
haiku
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
eclipse apócrifo II
eclipse apócrifo
Os mortos não envelhecem.
Os rios também não - e foi um rio que me disse isso.
(toda palavra é crueldade)
todo silêncio também
A lua é um espelho.
Quem me ensinou a língua dos dragões não está mais aqui.
Talvez nunca tenha estado.
Minha sede amanhece todas as noites.
Uma parte de mim nunca dorme.
A outra é sono contínuo.
Existe uma árvore do outro lado da cicatriz.
nuno g.
toróró, 04 de fevereiro de 2025.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Hexagrama 47
domingo, 12 de janeiro de 2025
domingo de chuva
para lari,
"meu passado era um rio maldito"
William Seward Burroughs
Todos os dias penso na morte.
Quando chove, quando faz sol, quando está nublado.
Todas as noites penso na morte.
Quando sonho, quando não sonho, quando não durmo.
O rio corre. O céu chora. A casa respira em silêncio.
Não estamos mais no deserto.
Tudo está povoado.
Abro as janelas, os gatos entram.
Esquento água para o café.
Atento a cada gesto que amanhece.
Reúno os fragmentos dos sonhos que me povoaram.
Seu pai, Luiz Nova, Clóvis e uma extensa praia mexicana.
Tudo se move o tempo todo.
O que aproxima e o que afasta são um só e o mesmo impulso.
O silêncio sobe e desce a escada de madeira.
Como se fosse um gato.
Como se fosse possível que todas as coisas fossem outras.
Como se fosse desejável que todas as coisas fossem de outra maneira.
Tempo significa ação incessante, movimento perpétuo.
Alice e Assucena brincam.
Perseguem as co-cós em cada janela.
Voltei a sentir medo no meu coração.
Voltei a sentir medo nas minhas carnes.
Sigo sentindo o estranho e fascinante desejo de abandonar este mundo.
Os primeiros ruídos amanhecem.
Reúno os fragmentos de todas minhas frustrações.
Alice arrasta a mala no quarto.
Garfield procura lagartixas na varanda.
Todo o tempo penso na morte.
Na vida que há na morte.
No que a existência da morte nos obriga a fazer.
Hoje é domingo.
Chove e ainda sonho.
Embora saiba que todos os sonhos são mesmo feitos de sexo.
Agora me interessa apenas o que não é sexo no sonho.
Ou seja: o que não é sexo no sexo.
O deserto ficou para trás.
Estamos pisando em terra úmida.
Mangue de terra roxa onde as crianças se lambuzam e se divertem.
Restou pouco, muito pouco, de mim desde que a gira iniciou seu movimento.
Senti vertigens, calafrios, pânicos indescritíveis.
Eles narraram meu corpo até essa manhã de domingo e chuva.
Foram podando tudo que não pertencia à árvore que sou.
Alice regressa a seu quarto.
Não sei o que faz agora.
Não sei se ler ou se voltou a adormecer.
Ouço a vozinha cheia de ternura de Assucena subindo os degraus.
Ouço cada gota da chuva que cai no telhado.
A Pina entra no quarto de Alice.
Penso na morte. Na minha morte. Na morte dos que amo.
Como tenho feito todos os dias.
Penso em tudo que a morte me obrigou a fazer.
Penso em cada poema que escrevi até hoje.
Penso no deserto em que nos encontramos.
E volto à certa praça de Feira de Santana.
Tenho um coco entre as mãos.
Você vomita.
Enquanto esperamos que qualquer coisa venha de qualquer lugar nos curar.
Talvez tenha vindo de nós mesmos.
Talvez tenha vindo das estrelas.
Talvez tenha vindo do fundo do mar.
Talvez, talvez, talvez...
Parece que essa sentença guarda o máximo de certeza que conseguimos tocar com as mãos.
Ou com a língua ou qualquer outra parte do corpo.
Deixo que a chuva toque meus cabelos.
Deixo que o domingo se infiltre em minha oração.
Reúno os fragmentos de deserto que estão aqui ainda.
E com eles vou tecendo os fios da morte em busca das máscaras da vida...
nuno g.
Toróró, 12 de janeiro de 2024.