quando me banhei no rio vermelho ainda não havia nascido
foi antes de minha mãe escutar o meu chorofoi antes do meu pai escutar o meu coração
quando me banhei no rio vermelho senti o frio tocar minha pele
e a força da luz arrebentar os véus de meus olhos
e a ardência do ar rasgar minhas vias respiratórias
ainda não havia nascido
quando me banhei no rio vermelho
meus pais ainda não haviam regressado ao reino dos mortos
e a lua, o sol e as estrelas já estavam ancoradas no firmamento
quando abandonei o mundo do Nada
e senti o sangue do rio lavando os cristais dos meus sonhos
ainda não havia nascido
e não habitava em mim nenhuma consciência sobre meu rosto
quando me banhei no rio vermelho
Uakti cruzou a mata com seu corpo-flauta
com seu corpo-flecha e com os pássaros
que me trouxeram as sementes antigas
quando me banhei no rio vermelho
ainda não existiam lágrimas em meu corpo
e meu espírito já não mais recordava os dias e as noites
em que vagabundeara pela face da terra
quando me banhei no rio vermelho
serpentes dançaram à minha volta
e o Azul e o Amarelo se entrelaçaram no escuro
foi antes do florescer das luzes
quando a terra ainda se chamava Pangeia
e o meu rosto se fez vermelho e vivo
e dele foram apagados quaisquer traços do Esquecimento
quando me banhei no rio vermelho
as mãos firmes e delicadas da Senhora de Roxo
moldaram com lama e água salobra
meu rosto, minha lucidez e a fugaz consciência
do despertencimento que rege meus aéreos movimentos.
nuno g.
Toróró, 17 de fevereiro de 22.
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