quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

As mortes e as mortes de meu pai

para Nuno Guedes Pereira


muitas e muitas vezes só desejei teu colo

ou uma morte suave e delicada como o beijo do inimigo

o que é o mesmo dito com outras palavras

muitas e muitas vezes cruzei as ruas da cidadela

entre ventos, poeira e raios de sol

a alça do caixão à mão direita

ou esse nome pesado sobre a coroa de meu destino

o que é o mesmo vivido com outros gestos

muitas e muitas vezes enterrei meu pai

entre as teias de aranha suspensas no quadro da sala

ou entre as dobras do redemoinho do esquecimento

o que é o mesmo pintado com outras cores

muitas e muitas vezes beijei a boca da insônia

e cavalguei no alazão acinzentado

como se soubesse que ao fim da estrada

me aguardava uma borboleta dourada

um menino com nome de archanjo

e a terra fria onde repousariam minhas densas carnes

tantas vezes escutei o cantar dos galos e o soar dos sinos prateados

e olhei com olhos de açoite o azul do céu

ouvindo o crepitar da lenha à ação do fogo

aqui meus guias em força e luz

e minha sina de ser sempre firme sobre todas as coisas

caminhar às águas ou ascender aos céus

o que é o mesmo pronunciado em outra língua

muitas e tantas vezes só desejei o sono

e não ter que nunca mais enterrar meu pai

sob o fundamento onde o mistério deitou raízes

ásperas, severas, inesgotáveis.


nuno g.

Toróró, 10 de fevereiro de 2022.


4 comentários:

  1. Ainda és o velho jaguar rugindo versos de se escutar de longe, camarada! Belo, delicado e forte como uma adaga prateada e afiada na pedra da memória ancestralesca.

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  2. A última palavra desse poema diz muito sobre as mortes, as dores, as ausências, as presenças , as angústias e os desejos de versar.... inesgotáveis

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