às vezes é preciso regressar - sem culpas.
o vento moveu as folhas.
e a tarde se esticou no varal.
às vezes é preciso regressar - sem culpas.
o vento moveu as folhas.
e a tarde se esticou no varal.
No quiero
Que mis muertos descansen en paz
Tienen la obligación
De estar presentes
Vivientes en cada flor que me robo
Stella Díaz Varín
uma vez mais entre os que cruzaram a fronteira do rio
seus olhares desfigurados, suas fraturas expostas, seus corpos em escombros
seus sorrisos atados ao laço como animais de estimação
e meus braços remando contra todos os ventos
apenas a memória machucada içada como bandeira de um barco pirata
e o ranger de dentes ecoando no coração da árvore chamada Tempo
uma vez mais entre os que cruzaram todas as fronteiras
imperturbável e sereno ante a tempestade impenetrável
buscando apenas um lugar de repouso e descanso
sem saber como ensinar alguém a amar o que é em si detestável
suas feridas expostas, cicatrizes indesejáveis e a sombra da lua sobre as águas
apenas a memória machucada alçada à condição de sina inevitável
uma vez mais entre os que habitam a casa onírica das centopeias e caracóis
apenas o rio, o vento e o sangue do sol banhando a nudez das estrelas...
nuno g.
Toróró, 24/09/24.
para Maria Alice,
Tínhamos um pé de maxixe e um cavalo chamado Tempestade.
Antes de nós ele havia se chamado Trovão.
Comíamos pirão uma ou duas vezes por semana.
E colhíamos goiabas na varanda.
Tínhamos uma rede alvinegra.
Um lugar onde acendíamos fogueira quase todos os dias.
Uma cadela chamada Paçoca.
E um céu cheio de estrelas pairando sobre nós.
Tínhamos um rio que dormia e acordava ante nossos olhos.
E uma pequena cobra coral de estimação.
Brincávamos com as palhas dos milhos juninos.
Fazendo toda a família do Visconde de Sabugosa.
Uma vez ao ano seu Toróró nos trazia jabuticabas colhidas no terreiro.
E líamos muito. Líamos livros e folhas de plantas.
Estávamos cercados por juremas.
Fomos alguma vez a Cordisburgo.
E a tantos outros lugares que parece que não fizemos outra coisa senão viajar.
Assávamos carne aos fins de semana.
Nos divertíamos no balneário da Pitanga.
Íamos à praia do Montecristo sempre.
E éramos vistos muitas vezes nas Cabaceiras do Paraguaçu.
Depois adotamos João e não pararam mais de nascer cães em nossa casa.
Ganhamos uma gata de nome Judite que sempre recebia visitas de um gato que chamamos Anônimo.
Judite passou três dias debaixo da cama.
Não saia nem para comer.
Até que decidiu ficar e nunca mais voltou para debaixo da cama.
Depois veio a Pina, o Garfield e o Dino.
Seguíamos comendo maxixes e sonhando.
Seguíamos comendo pirão e sonhando.
Até que veio Ian, a cigana e tudo o mais que já sabemos.
Até que veio Larissa, Assucena e todas essas janelas que se abriram.
Ontem teve eclipse.
Eliana cobriu-se por alguns instantes com o véu das sombras.
Fiquei olhando como quem olha um espelho maravilhoso.
E vi novos maxixes nascendo entre as orelhas de Tempestade.
E vi cada uma das mil chuvas viradas que enchiam nossa casa de água.
E vi você caminhando entre pedrinhas amarelas e galáxias desconhecidas.
Uma onça te guiava entre despenhadeiros e montanhas.
Fiquei olhando como quem olha uma caverna.
E vi você ninando Assucena com as histórias do jaguar encantado.
Depois veio a Cristalina, o Come-e-Dorme e o Waldick.
Depois veio o Calabouço, o Álbum de família e o Dicionário.
E pouco antes do sol nascer essa infância foi se encarnando em letras azuis no papel.
nuno g.
Toróró, 18/09/24
em terra de olhos turvos e neblina tóxica a cegueira reina
israelenses cegam libaneses com bipes que explodem
associações de cegos se revoltam contra a lucidez de Saramago
candidatos cegos insistem em convencer pessoas cegas a votar cegamente
o país arde em chamas criminosas e a fumaça nos cega
pastores cegos guiam rebanhos cegos ao inferno
hiperbolicamente antenados com a enfermidade que nos extingue
que em nós se extingue
e que nos impede ver como sair como entramos como sobrevivemos
neste tempo em que escatologia e história se fundem
como o zinco ao zinco
como o sinistro ao sinistro
como a ausência à ausência e à Ausência
em terra de cegos os eclipses passam quase desapercebidos
como nossas sombras ao atravessar a rua
ou como aquela bigorna de esquecimento que já não nos permite recordar
as centenas que ficaram cegas nas protestas chilenas
ou os libaneses de ontem que já começam a ser apenas um esquecimento mais
o que poderá nossa imaginação a partir dessas ruínas?
assim pixado no muro de Cachoeira
ao lado, escrito em tinta que não se vê,
: em terra de...
nuno g.
Toróró, 18/09/24
Atirei mil flechas contra o sol.
O meu ódio é sagrado e reluzente.
Aprendi isso arrastando meus joelhos por léguas e léguas de solo pedregoso.
Derramei mil lágrimas no vazio da taça.
E vi a noite despencar sobre as ilusões humanas.
Servi feijão aos três irmãos.
E adorei o sol, a lua e as estrelas.
Adorei o rio, as onças e as borboletas.
Estendi no varal do horizonte o manto do Obscuro.
Entoei cânticos de sacrifício enquanto pensava em Gary Snyder em sua cabana no além.
Vivo numa época estúpida.
Cercado por ideias estúpidas nascidas de mentes estúpidas.
Devoro a estupidez da atmosfera como Alcides devorava as flores de aniversário.
Atirei mil sóis contra a primavera.
Inferno é uma singela palavra que me habituei a pronunciar com delicadeza.
O amor é sagrado e reluzente.
Como as areias de Tempo que escorrem entre meus dedos e cílios.
Assucena desayuna batata, ovo, cenoura e uvas.
Teresa vê tão longe que não alcanço.
Rude e violenta é essa obstinada tentativa de nos vender a felicidade a qualquer custo.
Alice dorme.
Larissa dorme.
Hermenegildo e o Velho cruzam a estrada de mãos dadas.
A estrada é sagrada e reluzente.
O choro de Assucena é sagrado e reluzente.
O sono de Alice é sagrado e reluzente.
O leite de Larissa é sagrado e reluzente.
O mundo é opaco, a mata é sombria.
O Ferreiro selvagem é iluminado e poderoso.
Roxo é muito mais que uma simples cor.
Toco a lama sagrada e reluzente em busca de fósseis preciosos.
E atiro minha última flecha contra o horizonte.
Em direção às águas, à palha e à voracidade de tudo que nos consome.
nuno g.
Toróró, 15 de agosto de 2024.