para Patti Smith,
Voltei a tomar café como antes.
O excesso de amargo provoca o mais adorável dos transes.
Come-e-Dorme morreu.
João morreu.
Carminha morreu.
Construíram um bairro inteiro sobre a lagoa da Catumbela.
Nele, um posto de saúde com a bela vista do que sobrou de águas e carnaúbas e garças.
Assucena ali tomou mais uma vacina.
Fiquei olhando os tapuias dançando sobre as casas.
Os ventos de agosto chegaram.
Vejo cavalos em disparada pelas calçadas do Benfica.
E a dama da noite recordando quando ali tudo era chácaras de fim de semana.
Depois de amanhã Alice chega.
Depois de amanhã é uma medida de tempo semelhante à das cem mil duzentas xícaras de café.
Sonhei com Adélia incendiando o pasto do Liu.
Finalmente tomava coragem.
Arranquei o carro e fui até a rua Ceará em Divinópolis.
Toquei na porta e ela abriu.
Lhe entreguei o Álbum de família e o Dicionário dos medos imaginários.
Ela leu num relampejo.
Olhou nos meus olhos e disparou: reze.
Despertei com o coração aos galopes.
Recordando todas as vezes que desisti de incluir Divinópolis na minha rota.
Temor de não ser digno de me apresentar onde deus fez morada.
Notícias trazidas pelo vento Aracati:
Um enxame de abelhas atacou ferozmente os dois habitantes da calçada de meu bisavô.
Um foi a óbito, outro se recupera no hospital.
Saudades da Dellany, memórias daquela despedida no Bixopá.
As aulas regressam lentamente, como os caracóis que perseguem a palavra.
Só na tragédia a lua realiza seu destino.
Existem histórias que nunca poderei narrar.
À primeira noite em São Bernardo das Éguas Russas sonhei que estava na Lagoa do Mato.
Dentro do verde e salgado mar do litoral leste.
Pari duas luas.
Peço permissão aos deuses para a história deste sonho narrar.
Palavras para descrever as falésias, as jangadas e aquele vazio de quando as ondas recuam.
Chico, em belas fotos com Claudio.
O Dono de Todas as Matas protegendo os dois.
Assucena brincando no parquinho reluzente do bairro Granjeiro.
Tia Neuza insistindo em botar cadeira na calçada.
Nenhum temor à morte.
Nenhum temor às italianas e ferozes abelhas.
Apenas o rio apagando suas últimas memórias.
E uma nova e estranha lucidez apontando no horizonte.
Segunda chega e domingo não.
Às quatro da manhã despertei com o cheiro das palavras de Adélia à chuva.
Come-e-Dorme foi submetido à eutanásia.
João livrou-se da corda para morrer em liberdade.
Larissa costura, costura e costura.
Tece as linhas do leite e da razão no tear onde se gestam estrelas.
Na minha mesa de trabalho repousa O viajante da solidão.
Dedicado de punho à Eliana Gonçalves no ano de 1969:
a Eliana
cordial homenagem
Artur Eduardo Benevides
Insistimos em saber o que fez Larissa chorar.
Não pudemos esquecer nem recordar.
Existe um deus asmático e sonâmbulo que me visita certas sextas-feiras.
Vem sempre acompanhado do meu tio Joãozito.
João Ferreira Lima, de pia.
Carteiro como Charles Bukowski.
Assucena desperta e chora.
Alice me chama e eu vou.
Um dia volto pra narrar a história do sonho das duas luas.
A mãe de umbigo de Assucena à porteira: ô de casa!
Larissa interrompe a tessitura e me chama: vem ver isso!
Desadormeço e avisto a filha do João à porteira.
Em tudo igual ao pai.
Ela olha pra corda abandonada no terreiro.
Pro cantinho vazio onde ele viveu seu destino.
E se vai.
Sem olhar para trás.
Sem saber que nunca mais seremos os mesmos de antes.
nuno g.
Toróró, 12 de julho de 2024.