Nossos passos, nossas promessas e
o suor dos nossos
corpos
saindo de casa forte ao meio-dia e
caminhando em
direção ao antigo
sem nenhuma morbosidade no ventre ou
no olhar
meu ex-apartamento,
meu ex-marido e meu
pânico de lagartixas
as crianças burguesas brincando no parque da
jaqueira
o tédio estampado na cara dos porteiros dos
arranha-céus
os automóveis se arrastando no asfalto e dando voltas
sobre si mesmos
meu segundo
ex-apartamento, meu segundo ex-marido e meu
eterno pânico de lagartixas
o rio pedindo socorro e zombando dos
sorrisos que o
aniquilam todos os dias
as sirenes domingueiras, os semáforos domingueiros
as famílias
domingueiras empurrando carrinhos de bebês
e se
empanturrando de doces e guloseimas domingueiras
Nossos passos chegando ao Derby e
descansando da
pressa contida nas
derrotas da
vida toda
sua mão acariciando minha suave ereção espontânea
sua mão acariciando a fauna e a flora
deste repositório
de agudas infecções
a juventude protestante passa entoando cânticos de
louvor à própria
desgraça
o fiteiro nos regala uma água com gás bem gelada
simpáticos policiais nos dizem boa tarde
professores universitários e taxistas cegos e profissionais
liberais
disputam cada
centímetro de asfalto
com uma
voracidade miserável
fotografias publicadas diretamente no instagram e nas
orelhas dos
livros que aguardam por ser escritos
minha mão acaricia sua buceta
meu ex-apartamento,
meu ex-marido,
meu pânico de lagartixas
uma segunda ereção espontânea e
vendedores de
mapas para personagens de fábulas
Nossos passos tocando o mistério encravado nas unhas de glitter
da avenida conde
da boa vista
as crianças burguesas brincando no parque
a saudade
mastigando o terror e a
carcaça dos
inimigos destroçados
o sangue ainda fresco – apesar dos
quarenta anos
passados – avermelha a quentura do asfalto...
as coxas brancas, o sonho branco,
o sêmen azulado
expostos à
curiosidade dos infames
jornalistas de plantão
expostos à curiosidade infame dos
desavisados
transeuntes
expostos à miséria moral dos disfarces carnavalescos...
a juventude protestante enchendo nosso saco
com seus cânticos
desgraçados
o rio gritando por socorro
minha ex-morada, meu
ex-bancário aposentado,
minhas lagartixas de estimação se
alimentando dos cupins do armário
os ônibus, as bicicletas e as notas de rodapé
destes edifícios
nos olhando com suas enormes e assustadoras
pupilas
dilatas
o cinema, o rio e o martírio dos heróis de 17 nos olhando
com seus cabelos
assanhados
– aos pés de qual destas pontes estará
a famigerada
estátua?
a qual destas nuvens me levará esta
escada
espiralada?
quem deterá o apodrecimento irreversível
desta cidade de
siris e homens pálidos? –
o fiteiro nos regala uma água com gás
suficientemente
gelada
alimentamos os pombos com pipocas
enquanto vemos as
florzinhas universitárias
ensaiando
passos de frevo requentado
& um cortejo de eguns desfilando
ao som de um
maracatu rural
Nossos passos, nossos pensamentos, nossos ancestrais
se arrastam em
direção ao pátio do terço
onde três anos atrás conversei com uma pomba-gira alucinada
tuas mãos lambuzadas de dendê & leite maltado
agarram meu pau
como quem
agarra a voz
do oráculo antes que ele pronuncie
qualquer
palavra
a feirinha com seus pratinhos de
cuscuz macaxeira
e charque e
suas
bonequinhas de pano
e seus
yodas vestidos de frade
– aos pés de qual dessas pontes
estará a estátua?
–
águas, edifícios, velas, siris contaminados,
calçadas
ensanguentadas
minha mão alisa sua bunda e suas unhas traçam arabescos
indecifráveis na pele que
reveste minhas
omoplatas
escarro na tua boca e te beijo enquanto você sorri com uma
ferocidade delicada
é linda a cidade que
eu escolhi para amar
dez reais um acarajé sem cadáveres
pipocas aos pombos e facções de jovens se degladiando entre
as
esculturas
soníferas de Brennand
minhas dívidas saltando como
rãs e formulários
e formulários e formulários
se acumulando
na minha caixa de imails há anos abandonada
as bonequinhas de pano me olhando de soslaio
enquanto minha
borboletinha se refresca
na cachoeira
da solidão em alguma praia da ilha do desterro
uma terceira e última ereção
neste calvário
nesta peregrinação de lábios em busca dos lábios de uma
estátua
tua carne ardendo – acesa pela selvageria das tapas recebidas na madrugada passada
Nossos passos, nossas mãos, nossa franciscana devoção
amordaçando o
oráculo improvisado e
todas suas
bestiais palavras sobre sacrifícios
sobre futuros e
sobre
o nada
recorremos a Ascenso Ferreira,
mas ele é só uma
escultura de bronze e
esculturas de
bronze não proferem palavras
recorremos ao fiteiro,
mas fiteiros só
regalam gasosas engarrafadas
recorremos à moça que passeia distraída,
mas a moça só
sabe de drogas sexo & farra
jogamos pipocas aos peixes que
sobrevivem em
meio ao distúrbio agourento
destas premonitórias águas
e disparamos projéteis, asnos, insultos, lagartixas,
psiquiatras e metáforas
contra uma
ansiosa réplica abandonada do tradicionalíssimo galo da madrugada
tomamos uma limonada com sal e
dispensamos os
ansiolíticos
enquanto você
se diverte redefinindo as
angustiadas fronteiras de minhas cicatrizes inflamadas
por quê já não mais
aqueles tapas na minha cara?
as paredes pintadas do estacionamento da
católica
universidade
as portas fechadas do bar central
o baobá imperial às margens do rio que sussurra em guerra
contra essa cidade que
há séculos e
séculos e séculos o estrangula o asfixia o esmaga
holandeses, judeus, árabes e mercenários de origens
imaginárias
saltitam como
coelhos endiabrados por todas as partes dessa cidade
adoradores do profeta em verniz de ébano carregando cântaros
abarrotados de águas
traficadas do rio
oxum
onde se
afogam ratazanas com dentes e orelhas cor de
esmeralda
enquanto o sol vai se despedindo no horizonte uma vez mais e
nossos silêncios
atravessam de
mãos dadas a ponte Buarque de Macedo e guiados pelas
informações
do google maps se aproximam
finalmente da estátua
– você fotografa, eu reverencio...
um mendigo me solicita um cigarro
e, inevitavelmente, penso:
existe mais filosofia
neste cigarro
que em toda a moral do
cristianismo
pegamos um uber e
regressamos à casa forte,
à sua adorável e
charmosa caixinha de fósforos.
nuno g.
Recife, 06 de maio de 2019.
Realmente.....
ResponderExcluirexiste mais filosofia neste cigarro
que em toda a moral do cristianismo
V.
kkkkkkkkkkkkk