quarta-feira, 8 de maio de 2019

O jardim dos baobás


Nossos passos, nossas promessas e
   o suor dos nossos corpos
saindo de casa forte ao meio-dia e
   caminhando em direção ao antigo
sem nenhuma morbosidade no ventre ou
   no olhar
meu ex-apartamento, meu ex-marido e meu
   pânico de lagartixas
as crianças burguesas brincando no parque da
    jaqueira
o tédio estampado na cara dos porteiros dos
    arranha-céus
os automóveis se arrastando no asfalto e dando voltas
    sobre si mesmos
meu segundo ex-apartamento, meu segundo ex-marido e meu
    eterno pânico de lagartixas
o rio pedindo socorro e zombando dos
     sorrisos que o aniquilam todos os dias
as sirenes domingueiras, os semáforos domingueiros
     as famílias domingueiras empurrando carrinhos de bebês
          e se empanturrando de doces e guloseimas domingueiras
Nossos passos chegando ao Derby e
     descansando da pressa contida nas
         derrotas da vida toda
sua mão acariciando minha suave ereção espontânea
sua mão acariciando a fauna e a flora
     deste repositório de agudas infecções
a juventude protestante passa entoando cânticos de
     louvor à própria desgraça
o fiteiro nos regala uma água com gás bem gelada
simpáticos policiais nos dizem boa tarde
professores universitários e taxistas cegos e profissionais liberais
     disputam cada centímetro de asfalto
        com uma voracidade miserável
fotografias publicadas diretamente no instagram e nas
     orelhas dos livros que aguardam por ser escritos
minha mão acaricia sua buceta
meu ex-apartamento, meu ex-marido,
     meu pânico de lagartixas
uma segunda ereção espontânea e
     vendedores de mapas para personagens de fábulas
Nossos passos tocando o mistério encravado nas unhas de glitter
     da avenida conde da boa vista
as crianças burguesas brincando no parque
     a saudade mastigando o terror e a
          carcaça dos inimigos destroçados
o sangue ainda fresco – apesar dos
     quarenta anos passados – avermelha a quentura do asfalto...
as coxas brancas, o sonho branco,
     o sêmen azulado
          expostos à curiosidade dos infames
               jornalistas de plantão
expostos à curiosidade infame dos
     desavisados transeuntes
expostos à miséria moral dos disfarces carnavalescos...
a juventude protestante enchendo nosso saco
     com seus cânticos desgraçados
o rio gritando por socorro
minha ex-morada, meu ex-bancário aposentado,
     minhas lagartixas de estimação se alimentando dos cupins do armário
os ônibus, as bicicletas e as notas de rodapé
     destes edifícios nos olhando com suas enormes e assustadoras
          pupilas dilatas
o cinema, o rio e o martírio dos heróis de 17 nos olhando
     com seus cabelos assanhados
– aos pés de qual destas pontes estará
     a famigerada estátua?
a qual destas nuvens me levará esta
     escada espiralada?
quem deterá o apodrecimento irreversível
     desta cidade de siris e homens pálidos? –
o fiteiro nos regala uma água com gás
     suficientemente gelada
alimentamos os pombos com pipocas
     enquanto vemos as florzinhas universitárias
          ensaiando passos de frevo requentado
& um cortejo de eguns desfilando
     ao som de um maracatu rural
Nossos passos, nossos pensamentos, nossos ancestrais
     se arrastam em direção ao pátio do terço
onde três anos atrás conversei com uma pomba-gira alucinada
tuas mãos lambuzadas de dendê & leite maltado
     agarram meu pau como quem
         agarra a voz do oráculo antes que ele pronuncie
              qualquer palavra
a feirinha com seus pratinhos de
     cuscuz macaxeira e charque e
          suas bonequinhas de pano
               e seus yodas vestidos de frade
– aos pés de qual dessas pontes
     estará a estátua? –    
águas, edifícios, velas, siris contaminados,
     calçadas ensanguentadas
minha mão alisa sua bunda e suas unhas traçam arabescos indecifráveis na pele que
     reveste minhas omoplatas
escarro na tua boca e te beijo enquanto você sorri com uma ferocidade delicada
é linda a cidade que eu escolhi para amar
dez reais um acarajé sem cadáveres
pipocas aos pombos e facções de jovens se degladiando entre as
     esculturas soníferas de Brennand
minhas dívidas saltando como
     rãs e formulários e formulários e formulários
         se acumulando na minha caixa de imails há anos abandonada
as bonequinhas de pano me olhando de soslaio
     enquanto minha borboletinha se refresca
          na cachoeira da solidão em alguma praia da ilha do desterro
uma terceira e última ereção
     neste calvário
nesta peregrinação de lábios em busca dos lábios de uma estátua
tua carne ardendo – acesa pela selvageria das tapas recebidas na madrugada passada
Nossos passos, nossas mãos, nossa franciscana devoção
     amordaçando o oráculo improvisado e
          todas suas bestiais palavras sobre sacrifícios
               sobre futuros e
                    sobre o nada
recorremos a Ascenso Ferreira,
    mas ele é só uma escultura de bronze e
         esculturas de bronze não proferem palavras
recorremos ao fiteiro,
     mas fiteiros só regalam gasosas engarrafadas
recorremos à moça que passeia distraída,
     mas a moça só sabe de drogas sexo & farra
jogamos pipocas aos peixes que
     sobrevivem em meio ao distúrbio agourento
                  destas premonitórias águas
e disparamos projéteis, asnos, insultos, lagartixas, psiquiatras e metáforas
     contra uma ansiosa réplica abandonada do tradicionalíssimo galo da madrugada
tomamos uma limonada com sal e
     dispensamos os ansiolíticos
         enquanto você se diverte redefinindo as
             angustiadas fronteiras de minhas cicatrizes inflamadas
por quê já não mais aqueles tapas na minha cara?
as paredes pintadas do estacionamento da
     católica universidade
as portas fechadas do bar central
o baobá imperial às margens do rio que sussurra em guerra contra essa cidade que
     há séculos e séculos e séculos o estrangula o asfixia o esmaga
holandeses, judeus, árabes e mercenários de origens imaginárias
     saltitam como coelhos endiabrados por todas as partes dessa cidade
adoradores do profeta em verniz de ébano carregando cântaros abarrotados de águas
    traficadas do rio oxum
         onde se afogam ratazanas com dentes e orelhas cor de
              esmeralda
enquanto o sol vai se despedindo no horizonte uma vez mais e nossos silêncios
      atravessam de mãos dadas a ponte Buarque de Macedo e guiados pelas
           informações do google maps se aproximam finalmente da estátua
– você fotografa, eu reverencio...
um mendigo me solicita um cigarro
e, inevitavelmente, penso:
existe mais filosofia neste cigarro
que em toda a moral do cristianismo
pegamos um uber e regressamos à casa forte,
     à sua adorável e charmosa caixinha de fósforos.

nuno g.
Recife, 06 de maio de 2019.




Um comentário:

  1. Realmente.....
    existe mais filosofia neste cigarro
    que em toda a moral do cristianismo
    V.
    kkkkkkkkkkkkk

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