para Maria,
Ainda era cedo e chovia. Não me
alcançou tempo para um café. Olhei pela janela e fui descendo a vista desde as
nuvens carregadas e seguindo as águas caindo entre os arranha-céus da cidade
até o chão de asfalto. Recordo ter pensado como sempre me pareceu bonita essa
cidade quando açoitada pela chuva. Recordo também nunca ter conseguido ocultar
sequer de mim mesmo o inconformismo e a insatisfação que há muito tempo me
afligiam ante aquela verticalização desenfreada que não passava de mero sintoma
da obsessiva ânsia modernizadora tão típica do sonho colonizado e avassalador
que regia e segue regendo a mentalidade estreita das classes médias e altas de
nossa província. Tudo isso passou em minha cabeça num breve par de minutos. O
carro me esperava na portaria. Com a ajuda das muletas segurei a porta do
elevador e parti.
Deveriam ter outras pessoas no carro,
mas eu estava só. Absorto na estrada e na chuva sequer chegava a ouvir a
conversa e os ruídos dos outros passageiros. Suas presenças não provocavam em
mim nenhuma ressonância. Absorto na estrada e na chuva nenhum eco me
atravessava e nada desviava o foco de minha atenção. Nos próximos cento e
sessenta e quatro quilômetros nenhuma distração alteraria minha completa
imersão no movimento do carro cruzando aquela paisagem, nada alteraria o rumo
incerto dos meus pensamentos, nem minha solitária meditação.
Até a vila do Boqueirão do Cesário a
vegetação encontrava-se verde e chovia. De aí em diante as águas estancaram e a
paisagem não mais escondia os anos e anos de estiagem prolongada. Segui atento
à estrada. Apenas o pulsar do meu coração me fazia companhia. E quando menos
esperava avistei surgir na linha do horizonte o enorme e retilíneo paredão de
pedra calcária que tão profundamente se gravara em meu imaginário tomando a
forma de uma imensa cicatriz onde se inscreveram todos os acontecimentos
importantes ao largo desses vertiginosos últimos quarenta anos. Apesar de tudo
e de todos: a chapada do Apodi seguia no mesmo lugar e sua imponente e
exuberante presença me trazia uma sensação quase mística de alívio, conforto,
aconchego e acalanto.
Iniciamos a descida para o interior
do vale pelas areias do tabuleiro por onde nos últimos séculos desceram as
águas depois de iluminarem os cajueiros do planalto com seus maturis
desabrochando e suas sombras sempre aprazíveis e convidativas para receber o
cansaço dos negros que escapando à tirania insaciável dos tentáculos escravagistas
do monstruoso e predatório sistema colonial povoaram e procriaram naquela zona
de terras férteis que como uma serpente enfeitiçada margeava o vale sagrado de
onças pardas e índios tapuias onde me tocara viver toda a infância.
Avistei o cemitério e a lagoa da
caiçara. Os mortos e os aguapés eram um sinal de que a viagem findava. Cruzamos
os semáforos da Avenida Dom Lino; a igreja São Sebastião e a Matriz ergueram-se
ante meu olhar que nesse instante em tudo se assemelhava ao olhar matreiro e
desconfiado de um gato. Sem dar qualquer sinal o carro dobrou à direita na
travessa professor Aprígio e estacionou exatamente em frente à casa de número
sessenta. Meus olhos realizaram idêntico movimento. Olhei a coluna da hora –
que como sempre marcava a hora errada – e com a ajuda das muletas saltitei até
a porta da casa.
Seguiu-se um breve instante de
hesitação até que virei o rosto em direção contrária ao beco da Helena e
avistei meu avô caminhando em minha direção com seu habitual cigarro carlton aceso aferrado entre os dedos
envelhecidos. Chegando à casa dos Cordeiros seus passos fizeram uma breve
trégua enquanto ele trocava algumas palavras com seu Joaquim debruçado sobre o
parapeito da janela. Deviam falar sobre as águas, as plantas e os bichos da
fazenda do Pedro Ribeiro – ou simplesmente falavam de festas, funerais, mulheres
e bebedeiras para sempre perdidas num passado mítico que nunca mais se tornaria
possível: ou ao menos eram coisas dessa ordem as que eu imaginava.
Despediram-se e meu avô seguiu seus passos em minha direção. À medida que se
aproximava pude perceber que os contornos de sua face tornavam-se mais e mais
indefinidos e as feições de seu rosto perdiam todos os detalhes, sua imagem
esmaecia na mesma proporção em que se aproximava de mim, até que, finalmente,
desapareceu por completo.
Olhei para o céu. Havia tempo bonito,
ou seja, nuvens carregadas de águas. Pensei em Maria e fiz um esforço para não
chorar. Como quem recita os versos esquecidos de uma oração arcaica sussurrei a
seguinte sentença: essa semana vai ser
comprida demais, não choverá e o clima será insuportavelmente abafado.
Tomado por um estado de torpor e alheamento excessivamente difícil de ser
traduzido em palavras, algo assim como um completo abandono de si, ainda tive
forças para concentrar minha atenção e serenidade nos versos que minha boca
prosseguia a sussurrar: estou em casa.
Esta terra um dia tratará de devorar minhas carnes e meus ossos. Mas antes ela
vai ter que esperar: ainda me resta algo a fazer e isso não poderá ocorrer até
que tudo esteja concluído. Entrei na casa, fechei a porta e aguardei o soar
da campainha.
Eles chegaram e eram três. Jovens,
alegres e despreocupados. O rapaz parecia estar sob o efeito de alguma droga
tranquilizante. Não trazia barba, tinha cabelos curtos e bem penteados. As duas
moças eram bonitas, exibiam a vertiginosa exuberância que torna tão atraente os
corpos juvenis e não demonstravam nenhum interesse por esconder a excitação que
lhes possuía. Abri a porta, servi um café, acendi um cigarro e olhando
fixamente o lugar da parede no centro da sala onde durante mais de duas décadas
estivera pendurada a pintura mais perfeita que minha mãe executara eu soletrei:
sim, podem começar.
A mais fogosa e faceira das meninas,
exibindo um sorriso que revelava algo de sua ansiedade e nervosismo e que, por
essa razão, multiplicava em progressão geométrica seu poder de encantamento e
sedução, simplesmente falou: comecemos
então pela morte.
É um ótimo começo – contestei sem pestanejar. A
morte é o princípio de tudo. Sem ela não haveria nada. Não existiria
pensamento, religião, filosofia, poesia ou paisagem. A morte é o parto de tudo
que respira no imaginário da humanidade. E sem imaginário a humanidade não
seria nada. Sem ela não haveria risco, não haveria aventura, não haveria
travessia, não haveria forma, não haveria passagem. Sem ela só haveria o nada.
Tudo à nossa volta e tudo dentro de nós está impregnado de morte e,
consequentemente, de sentido. Nas casas, nos bichos, nas ruas, nas praças, nos
rios, nas lembranças e em tudo o mais que existe lateja, pulsa, habita e
respira essa encantadora senhora que na falta de nome mais apropriado
terminamos por batizar de morte. Sua omnipresença é a fonte de todos os
simbolismos que dotam de significação o existente. Na minha infância eu era
possuído por um autêntico e hipertrofiado pânico ante essa consciência da
omnipresença e inevitabilidade da morte. Isso tardou anos em se modificar e deu
origem a pesadelos ininterruptos e repetitivos que me roubaram incontáveis
noites de sono e transtornaram de maneira irreversível um longo período que deveria
ter sido marcado pela inocência e pela candura – o idílico em mim foi abortado
de maneira prematura e premeditada. Passado esse período inicial e consolidada,
em meu espírito, essa mescla indomável de lucidez e loucura que tem me servido
de oráculo e guia ao largo destes quarenta anos nos tornamos bons amigos.
Compartilhamos ideias, cafés e não sei quantos tragos de cachaças por esta vida
afora. Em dias mais inspirados e amenos chegamos mesmo a nos entregar a
licenciosas práticas amorosas que um relato pormenorizado chegaria a corar as
bochechas de qualquer um dos moradores dessa outrora pacata e provinciana
cidade. Convivi muitos anos com pessoas que encontravam-se empenhadas, com
quase a totalidade de suas forças, em empreender uma guerra estranha e insensata
contra a morte. Tudo o que não desejavam era morrer e dedicavam todas suas
energias e todo o seu tempo nessa luta inglória e absurda. Por não aceitarem a
fatalidade inexorável da morte perdiam a vida e enfraqueciam a chama do
sacrossanto candelabro. Quando abandonei esse claustro sombrio onde o niilismo
nefando reinava como um imperador que esbraveja impropérios e escárnios
soterrando tudo o que era vida, sentido, símbolo, desejo, gozo e significação –
pude recompor os acordes, a sintonia e o ritmo em que vibrava a lira da
catedral em chamas em que se convertera o palácio mnemônico adormecido no fundo
aquático da minha pessoal e intransferível caixa de pandora. Perdi minha mãe
antes de completar dois anos de existência. Em seguida, perdi meu pai. Logo
depois perdi meu primo mais velho e antes que pudesse assimilar e elaborar a
voracidade dessas ocorrências tive que com minhas próprias mãos enterrar o meu
avô sob essa terra que aqui pisamos agora. Não havia como fugir a isso. Não
havia como recusar o que junto com isso brotava e florescia nos prados da minha
consciência e da minha imaginação. Isso era inexorável. Isso era trágico. Eu
estava ainda tão cedo já no cume do absurdo e de lá tudo o que eu podia ver
estava banhado pelas águas da fatalidade. Percebi então que toda fatalidade
deveria ser abençoada e que esse gesto duro e áspero restituía certa nobreza aos
sentimentos que deveriam servir de base a uma arte capaz de ser simultaneamente
épica e trágica. A comédia era para os tolos, para os desavisados – e eu
deveria fugir dela como o diabo da cruz ou como os vampiros dos rosários de
alho. Hoje não vai chover, teremos uma tarde longa e terrivelmente abafada. A
noite será aprazível e delicada. Crescer nessa geografia semidesértica nos faz
diferentes de nossos conterrâneos das serras e das praias. O sertão e a morte
são irmãos gêmeos e os dois se levam dentro: como o mito e as fábulas. Sim, a
noite será aprazível e delicada. O vento Aracati correrá por essas ruas
arrastando a poeira do dia e o calor aprisionado no asfalto e levará consigo todas
essas nuvens carregadas de águas para as cabeceiras do vale. Eu poderia seguir
e lhes contar estórias de botijas, queijos coalhos e pistolagens. Poderia
também lhes narrar como em tão pouco tempo nossa estéril e incipiente burguesia
foi capaz de quase destruir a beleza de nossa capital e converter aquele santuário
de jangadas num amontoado completamente sem sentido de shoppings centers,
arranha-céus e condomínios de mau gosto. Eu poderia lhes narrar os primeiros
massacres, as pelejas intermináveis, as emboscadas sangrentas e toda a
trajetória das energias empregadas na consolidação do que viria a ser este vale
e esta província cravada neste continente fundado por antigos e perversos
ibéricos em sua luta insensata contra a morte e o nada. Poderia lhes contar a
estória dessas casas, falar de espingardas antigas e de morcegos dependurados
nos galhos da noite se alimentando de frutas afrodisíacas e se embriagando com
aromas exóticos. Poderia discorrer sobre homens vestidos de couro tangendo bois
e desgraças, sobre holandeses conduzindo navios piratas por estas águas
obscuras e sazonais ou ainda sobre súbitas fortunas de cera extraídas dos
carnaubais destas várzeas que entre farras homéricas e orgias episcopais
derreteram sem deixar vestígios... Mas prefiro simplesmente concluir
reafirmando que a morte é o começo da vida e que não existe nada mais mórbido
do que essa nefanda, perversa e insistente negação da morte que se expressa de
maneira tão predatória na ânsia modernizadora de nossas classes médias e altas.
O horror à morte tem impedido a celebração da vida e instaurado esse mundo
asqueroso de cosméticos e projetos de aquários. Quando terceirizamos a morte e
nos recusamos a velar os nossos nas salas de nossas casas perdemos uma
experiência essencial ou, o que é ainda pior, a substituímos pelo vácuo dessas
assépticas reuniões em salas climatizadas decoradas com flores de plástico e
garrafas de café frio e açucarado. A poesia deve ser celebração da vida, do
jogo indecifrável entre o acaso e o necessário, das cicatrizes e dos
ferimentos, da dor e do gozo, de tudo que pulsa, de tudo que respira, de tudo
que vive. E uma poesia assim só pode existir quando se diz sim à morte. Mas não
um sim qualquer. Não o sim limitado e condicionado da racionalidade. Um sim
nascido do corpo. Um sim que seja beijo, que seja abraço, que seja afeto,
fúria, recordação e transubstanciação das toxinas do nada. Que seja como esse
rio seco, como esse clima abafado, como esse paredão de pedra calcária, como o
canto agourento desses pássaros angustiados. Senti que com isso já era o
suficiente e encerrei meu monólogo.
A jovem que sugerira o tema da
conversação ergueu-se da cadeira de balanço, me beijou suavemente a boca e se
retirou em silêncio. Os outros dois a seguiram sem nada dizer. Voltei a olhar o
centro da parede da sala onde por mais de duas décadas estivera pendurado o
quadro mais bem executado pelas mãos de minha mãe, pensei em Maria, engoli a
saudade a seco e me apoiando nas muletas regressei à cozinha onde me esperavam
os poemas que estava selecionando para meu novo livro: álbum de família.
Quando o sol baixou botei a cadeira
de balanço na calçada e deixei que o vento Aracati me acariciasse o corpo ainda
preenchido pela quentura abafada desse dia comprido e, completamente absorto,
fiquei observando a ação eficaz daquele vento arrastando os sonhos e as nuvens
carregadas de águas para as cabeceiras perdidas deste vale de índios tapuias e
onças pardas que um dia eu deixara para trás. O sol mergulhou definitivamente
no horizonte dissolvendo mais uma vez a imagem desta vasta e impossível terra
prometida.
nuno g.
São Bernardo das Éguas Russas, 07 de
fevereiro de 2018.
Senti o aroma da terra tropical nessa narrativa cheia de sugestivas sinestesias.
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