quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Hexagrama 47

rezei à pedra, rezei ao fogo, rezei às plantas

rezei ao sol, rezei à lua e às estrelas

e no final só restou a memória 

do dia em que vi os mortos olhando o pôr-do-sol em Cruz das Almas


rezei à herpes e ao desconhecido

rezei à noite e aos anciãos das trevas

rezei, rezei, rezei

e o meu corpo suou como um cálice de sangue

vi coisas que não consigo narrar

vi coisas que não posso narrar

e no final só restou a vontade de morte e silêncio

reinando sobre todas as coisas



rezei ao lodo e à lama

e no final só restaram os suicidas olhando o sol se pôr no litoral leste


nuno g.
29/30 - janeiro, 2025.

domingo, 12 de janeiro de 2025

domingo de chuva

 para lari,


"meu passado era um rio maldito"

William Seward Burroughs



Todos os dias penso na morte.

Quando chove, quando faz sol, quando está nublado.

Todas as noites penso na morte.

Quando sonho, quando não sonho, quando não durmo.

O rio corre. O céu chora. A casa respira em silêncio.

Não estamos mais no deserto.

Tudo está povoado.

Abro as janelas, os gatos entram.

Esquento água para o café.

Atento a cada gesto que amanhece.

Reúno os fragmentos dos sonhos que me povoaram.

Seu pai, Luiz Nova, Clóvis e uma extensa praia mexicana.

Tudo se move o tempo todo.

O que aproxima e o que afasta são um só e o mesmo impulso.

O silêncio sobe e desce a escada de madeira.

Como se fosse um gato.

Como se fosse possível que todas as coisas fossem outras.

Como se fosse desejável que todas as coisas fossem de outra maneira.

Tempo significa ação incessante, movimento perpétuo.

Alice e Assucena brincam.

Perseguem as co-cós em cada janela.

Voltei a sentir medo no meu coração.

Voltei a sentir medo nas minhas carnes.

Sigo sentindo o estranho e fascinante desejo de abandonar este mundo.

Os primeiros ruídos amanhecem.

Reúno os fragmentos de todas minhas frustrações.

Alice arrasta a mala no quarto.

Garfield procura lagartixas na varanda.

Todo o tempo penso na morte.

Na vida que há na morte.

No que a existência da morte nos obriga a fazer.

Hoje é domingo.

Chove e ainda sonho.

Embora saiba que todos os sonhos são mesmo feitos de sexo.

Agora me interessa apenas o que não é sexo no sonho.

Ou seja: o que não é sexo no sexo.

O deserto ficou para trás.

Estamos pisando em terra úmida.

Mangue de terra roxa onde as crianças se lambuzam e se divertem.

Restou pouco, muito pouco, de mim desde que a gira iniciou seu movimento.

Senti vertigens, calafrios, pânicos indescritíveis.

Eles narraram meu corpo até essa manhã de domingo e chuva.

Foram podando tudo que não pertencia à árvore que sou.

Alice regressa a seu quarto.

Não sei o que faz agora.

Não sei se ler ou se voltou a adormecer.

Ouço a vozinha cheia de ternura de Assucena subindo os degraus.

Ouço cada gota da chuva que cai no telhado.

A Pina entra no quarto de Alice.

Penso na morte. Na minha morte. Na morte dos que amo.

Como tenho feito todos os dias.

Penso em tudo que a morte me obrigou a fazer.

Penso em cada poema que escrevi até hoje.

Penso no deserto em que nos encontramos.

E volto à certa praça de Feira de Santana.

Tenho um coco entre as mãos.

Você vomita.

Enquanto esperamos que qualquer coisa venha de qualquer lugar nos curar.

Talvez tenha vindo de nós mesmos.

Talvez tenha vindo das estrelas.

Talvez tenha vindo do fundo do mar.

Talvez, talvez, talvez...

Parece que essa sentença guarda o máximo de certeza que conseguimos tocar com as mãos.

Ou com a língua ou qualquer outra parte do corpo.

Deixo que a chuva toque meus cabelos.

Deixo que o domingo se infiltre em minha oração.

Reúno os fragmentos de deserto que estão aqui ainda.

E com eles vou tecendo os fios da morte em busca das máscaras da vida...


nuno g.

Toróró, 12 de janeiro de 2024.



quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

errata à posteridade: sobre Tempo e Ansiedade

Perambulava pelas escaldantes ruas de Cruz das Almas no último dia do ano

O sol reinava no céu como um dragão enfurecido

Quando encontrei o coveiro que agora virou jardineiro

Quando encontrei a cigana que segue sendo cigana

Trazia comigo o tinto carcamano de Fante

Que se misturava ao meu suor como a luz de uma estrela se mistura ao escuro da pedra

Enquanto o mecânico metia as mãos de graxa nas engrenagens do automóvel pirata

Em busca do lugar onde a água vazava

Lari sonhou com um rio inundando as casas

Lari sonhou com a fome dos condenados da terra

Sonhei com todos os descendentes de Edberto Gonçalves reunidos na hora da maré

Com os pés na areia e as faces abertas à brisa do mar do litoral leste

Os sonhos corrigem as distorções da realidade

As poéticas corrigem as distorções da historiografia

As ficções corrigem as distorções do cotidiano

Era já o primeiro dia do ano

E Lari crochetando um sonho de praia e verão

Alice desenhando e Assucena seguindo com os olhos as cismas do destino

O mecânico falava sobre o filho

Prestes a se formar em direito

E eu pensava no pai de Fante

E em todo o tinto carcamano que ele tomou na vida

A cigana fingiu não me reconhecer

O coveiro se ofereceu para voltar ao cemitério e cuidar da sepultura do anjo

Recebo uma mensagem da praia da Fortaleza em Ubatuba

E vejo dezenas de cearenses invadindo uma bodega sob o espanto do caiçara

E vejo Magui devorando areia salgada

E vejo Alice, Bené e Magui brincando e brincando e brincando por vários dias seguidos

Balanço a rede impulsionando o pé na parede

Embalando Assucena  

Rodopiando em torno aos meus próprios pensamentos

O ano finda, um tecladista provinciano toca no mercado de Cruz das Almas

As pessoas bebem, riem, se provocam

Tudo é sobre sexo, loucura e morte

Até mesmo o que não parece ser sobre isso

O nada só existe aos olhos de Deus

No meu sonho a única voz que se ouvia era a do tio Paulo

Ele falava sobre a fazenda Galileia e as ligas camponesas

E reproduzia longos trechos dos discursos de Julião  

Os sonhos corrigem a realidade

As poéticas corrigem as historiografias

As ficções corrigem o cotidiano

Eu pensava nos contos de Fante

Na delicadeza insuperável de Arturo Bandini

E no caminho amarelo que Ernesto me ensinou em seus últimos dias de vida

As agulhas de tricô são bem distintas às agulhas de crochê

O mecânico encontrou o vazamento

Trocou a peça e me cobrou 150 reais pelo serviço

O sol ardia e derramava fogo líquido sobre nossas cabeças

No meu sonho o mar da Lagoa do Mato seguia tão verde quanto sempre foi

À meia-noite vimos os fogos de artifício estourando lá no fundo do vale

Onde a cidade e as serpentes esperavam a passagem do ano para adormecer

Alice despertou cedo

Eu ainda pensava no conto de Fante em que o menino deseja se casar com a mãe

E em todas as coisas que conversamos ontem à noite

Sobre como seriam nossas vidas se outras coisas tivessem ocorrido

Assucena dormiu

Alice terminou mais um desenho

E Lari seguiu crochetando os fios que conectam os sonhos uns aos outros...

nuno g.
Toróró, 01 de janeiro de 2025.

memórias do Jaguar

Tia Neuza fugia da cozinha como o diabo da cruz.

A lembrança da criança despertando antes do sol para acender a lenha do fogão.

Assucena furou o pé no espinho da jurema.

Encontrei o coveiro e a cigana no último dia do ano.

Entre nós existe um fio de prata tênue e viscoso.

Entre nós existe um silêncio que nos liga.

Um leito de rio e muitas margens desdobráveis.

Os passos de Alice subindo a escada.

O pássaro laranja sobrevoando a manhã.

Lari tricotando um sonho de praia e verão.

O sol ardendo como os olhos de um dragão.

Meu tataravô era pirotécnico.

Meu bisavô era maçom.

Meu avô era espírita.

Meu pai era antiquário.

Eu sou só uma ponte entre o nada e o nada.

Entre uma ausência e outra.

Entre o mundo dos mortos e a morte do mundo.

Havia muito que dizer dos sonhos destes dias.

Mas a presença do coveiro à minha frente no último dia do ano os borrou da consciência.

Cruz das Almas é o lugar mais parecido com São Bernardo das Éguas Russas que existe na terra.

nuno g.
Toróró, 01 de janeiro de 2025